quarta-feira, 23 de maio de 2012

domingo, 29 de abril de 2012

Crônica do Gre-Nal 392, Caçapava e minhas orelhas geladas



Assisti ao gre-NAL no estádio, tiritando de frio e me maldizendo por ter deixado os agasalhos no carro, esquecendo-me do vento gelado que sopra na beira do Guaíba. O Inter foi para o jogo todo esgualepado, sem cinco titulares. O Grêmio não tinha o Gladiador, o que é uma ausência importante. O jogo foi a cara dos dois times: muita marcação, muita entrega, pouco talento. Ainda assim, no primeiro tempo, o árbitro Márcio Chagas da Silva conseguiu protagonizar dois lances lamentáveis. Primeiro, o defensor do Grêmio espalmou um chute de Guiñazú dentro da área. Pênalti claro não marcado. Tão constrangido ficou que, depois, não deu pênalti muito parecido, de Rodrigo Moledo, na área do Inter. Isso mesmo, seu juiz, tem que ter critério. No caso, o critério é cometer absurdos para os dois lados.

No Internacional, se é de lamentar as carências do grupo, não é possível reclamar da garra do time. Foi brigador o tempo inteiro. Jackson, grata surpresa, foi muito firme e, mesmo improvisado, foi suficiente para anular o On-Off Miralles a ponto de fazê-lo ficar no vestiário. O jogo foi equilibrado, com pequena supremacia do Inter, que perdeu um gol com Damião cabeceando, sozinho, na marca do pênalti, mas de uma forma tão delicada que Vitor quase agradeceu. O gol de Dátolo, que não jogava bem, foi a única jogada de talento do time. Depois de Damião disputar a bola contra 38 zagueiros do Tricolor, o argentino pegou a sobra de pé direito (que não é o bom) e deu uma bomba, cruzada. Vitor adivinhou o canto, pulou uma semana antes e, ainda assim, nada pode fazer. É bom que o Grêmio não esteja jogando a Libertadores: vai gostar de tomar gol de argentino assim lá em Santo Tomé, heinhô Vitor.

No segundo tempo, Luxemburgo trocou o esquema suicida que empregara na primeira etapa e seu time melhorou, fez um gol em uma bobagem de Moledo e jogou 20 minutos muito bem. Aí Luxemburgo resolveu ajudar o Inter. Deu um tapa e tentou esgoelar o gandula, que repusera a bola rapidamente para Dátolo bater escanteio. Foi um escarcéu, acabou expulso e o Grêmio desandou sua reação. O Inter ganhou ímpeto e recomeçou a atacar. Era um escanteio e o Inter tinha na área os dois zagueiros, Jô e Damião. Aí faltou gente para marcar Fabrício, que apareceu voando no primeiro pau e deu um tijolaço para dentro do gol, quase furando as redes e indo parar na torcida do Grêmio.

O jogo, então, foi para o final sem maiores emoções. Digo, sem emoções para quem via em casa e sem compromisso. Para quem estava no estádio tremendo de frio, o final foi tenso, como sempre. Não gosto de Gre-Nal, fico muito nervoso. Mas quem disse que eu consigo largar o marvado?

Luxemburgo escondeu a escalação até a hora da entrada em campo. Entrou com 18 jogadores e, só quando se posicionavam, deu para ver que time jogaria. Talvez estivesse escondendo de vergonha, pela pataquada que fez escalando um 4-3-3 que fragilizou o meio-campo em favor dos inoperantes Bertoglio, André Lima e Miralles. Corrigiu no segundo tempo, mais aí, fez aquela baboseira com o gandula. Está devendo à torcida. Além da péssima partida (ou ruindade mesmo... não sei, não acompanho o Grêmio) desses três jogadores e de Marco Antônio e de Gabriel, o Grêmio deveria ter mais uma preocupação. Antigamente, a equipe se segurava nas bolas altas, agora, nem isso. Perdeu quase todas, inclusive tomando um gol. Mas isso não é problema meu.

O Inter, sem meio time, esforçou-se muito, marcou muito (basta dizer que os destaques do time foram Tinga, Guiñazú e Sandro Silva). A falta de qualidade foi compensada com entrega. Talvez o grande emblema dessa dedicação a morder o calcanhar dos adversários, o tempo todo, tenha sido, ao final da partida, o encontro de Sandro Silva com o eterno Caçapava - centromédio marcador do Inter dos gloriosos anos 70. O repórter captou o áudio do diálogo entre os dois e todos pudemos ouvir, em alto e bom som, o velho Caçapa, que é do tempo anterior ao politicamente correto, dizer ao Sandro, enquanto provavelmente o abraçava: “Tu tá jogando uma barbaridade, EM Ô NEGRÃO: VAI TOMÁ NO CU!” Se não valesse por mais nada, ganhar do Grêmio e ouvir maravilhas já teria justificado minhas orelhas geladas. DÁ-LHE INTER!!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Photographias


As fotografias produzidas no século XIX me causam maravilha.

Eu estudo aquela gente. Aqueles lugares.

É conhecida e mil vezes repetida a sentença, devida a Marc Bloch, de que os historiadores devem ser como o ogro do imaginário medieval. Devem farejar a carne humana e andar onde ela estiver. Pessoas, é disso que trata a História. Está aí uma daquelas ideias tão simples e tão adequadas, que se deveria ter na frente da mesa de trabalho, colado no mural, tatuado no braço. Eu sei bem disso, não pensem que não.

Porém, apesar desse impulso e desse esforço consciente por reconstruir humanidades, basta olhar uma dessas fotos e fica clara a impressão de que a torrente de modelos analíticos, ideias, relações, escolhas narrativas, tudo isso acaba proporcionando, no máximo, imagens muito esquemáticas daquela gente.

Essa percepção me esbofeteia a cara quando olho para as figuras, os olhares, o corpo das pessoas naquelas fotos.

Olhem para esses dois sujeitos, no fundo desses retratos esmaecidos, encontrados junto a um processo criminal do final do século XIX. Eles foram acusados de um homicídio na fronteira do Brasil com a Argentina, em 1884.

Seraphim Cesário e Silva, 30 anos, solteiro, natural de Alegrete. No interrogatório, disse ser pedreiro, porém vivia de trabalhos eventuais.



Miguel Verdum, 21 anos, natural do Uruguai e também vivia de trabalhos não especializados.



Eu sei, os retratos são, eles também, muito artificiais. E se poderia dizer mil palavras analisando suas roupas, sua postura, os grilhões que lhes prendem os pés. Não farei isso aqui. Uma análise dessas imagens e da gente que transitava naquela fronteira, vocês encontram na tese de doutorado de Mariana Thompson Flores, que me cedeu gentilmente essas fotos e de cuja obra tirei a ideia para este post. Como apontou Mariana, "suas imagens, sentados com os pés presos por grilhões, devem representar que aspecto deviam ter esses inúmeros indivíduos que transitavam entre fronteiras geográficas e viviam entre o lícito e o ilícito." 

Aqui, porém, eu queria apenas declarar esse fascínio que me é inevitável. Creio que seja diferente para historiadores que estudam o século XX, familiarizados com os sujeitos e a época que estudam através de  um sem número de fotografias. Já, para os estudiosos do século XVIII ou épocas anteriores, essa percepção através da foto é impossível. Assim, só os historiadores que dedicam seu trabalho ao Oitocentos  talvez possam me entender. As fotografias existem. Mas elas trazem junto uma sensação que tem o poder de desnaturalizar.

Trata-se da experiência de render-se à imagem como um instrumento de comunicação com um outro mundo. 

E eu me assombro.



Parte desse post foi inspirado em comentário feito ao excelente post do Charlles Campos sobre as fotografias de Eugène Atget

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pais e filhos


Meu avô paterno era um homem sério. E antiquíssimo. Nasceu em 1902 e viveu quase um século. Era duro com os filhos. Há uma lenda familiar que atribui a ele uma regra disciplinar para Salomão nenhum botar defeito: um filho aprontava, todos os sete apanhavam. Assim, uns impediam os outros de fazer estrepolias. Era um tempo em que carinho físico entre pai e filho não se praticava. Ao menos não era o normal. Carinho era dar exemplo de trabalho, honestidade. Carinho era levantar todos os dias antes do sol nascer, para botar comida na mesa. Pensando assim, não deixa de ter alguma lógica. Mas qualquer gesto explícito de afeto entre pai e filho era desaconselhável, porque sinalizava fraqueza. E a formação dos homens não admitia isso. Talvez uma das grandes conquistas dos últimos 40 anos seja, exatamente, a superação desses valores. Não vivi aquele tempo, mas tenho a nítida impressão de que é muito melhor ser homem agora. Neste e em outros sentidos, a luta pela igualdade entre os sexos é libertadora também para os homens.

Meu pai entendia o velho dele. Mesmo com a doença dificultando seus movimentos, o pai seguia pegando o ônibus de Santa Maria para Jaguari, mais de duas horas de viagem, para passar três dias por semana com o vô. A terapia para as frustrações da infância, como sempre no caso do meu pai, vinha disfarçada em humor. Ele contava que, certa feita, tinha sete anos e meu avô era candidato a prefeito. Foram para o interior do município e lá se formou uma fila de crianças que iam chegando ao meu avô, que lhes abraçava e beijava. Meu pai viu a oportunidade e nem pensou duas vezes. Entrou na fila também. Quando chegou a sua vez, o vô o abraçou. Porém, notando de quem se tratava, soltou-o rapidamente, quase jogando-o no chão e reclamou, brusco: “ahh não guri... é tu...”.

***

Então os últimos dias trouxeram o fim do calorão o que é sempre bom e o outono aqui tem uma luz que acaricia a gente. Mesmo assim, foi um acúmulo de incômodos e contratempos, uns bens recentes, outros tão antigos que não consigo precisar quando iniciaram. Adoro meu trabalho, mas esta é uma época de afazeres burocráticos, com prazos a cumprir, o que me tira do sério, e também outros dramas inúteis a resolver. Ou para serenar o que não se pode resolver (porque depende da loucura dos outros e não da minha). Mas é difícil serenar quando se está na Roda Viva, então tudo vai ficando mais demorado do que devia. E hoje à noite só eu e o Miguel em casa, porque a mãe dele está viajando a trabalho e brinquei bastante com ele, depois o coloquei na cama. E ele pediu para eu deitar com ele enquanto via um filminho. Ele então rolou para todos os lados e me chutou e amassou o quanto pôde e até cantar cantou. Eu todo torto e já meio brabo de estar conseguindo um torcicolo e ter que acordar cedo amanhã. Depois de tanta agitação, ele foi acalmando até que, quase dormindo, me olhou bem faceiro e disse, sem motivo ou provocação, do alto dos seus três anos, feitos ontem, “Pai... eu te amo...” E me abraçou como nem sei explicar e nem quero saber do que carrego de ontem, nem quero saber de amanhã, nem nada que não seja o fato de que, hoje, a noite voa leve e serena, como um balão cruzando o céu.


quarta-feira, 28 de março de 2012

O Artista e Cantando na Chuva

Uma combinação de prazos a cumprir, filho pequeno e variadas demandas familiares me afastou do cinema nos últimos meses. Eu queria quebrar o jejum com "A invenção de Hugo Cabret". Estava marcado, mas não deu.

Ontem, depois de alguma engenharia de horários, conseguimos nos organizar. Fui assistir a "O Astista", sem esperar muito do filme. O Oscar não é nenhuma garantia de qualidade, como provam algumas porcarias retumbantes (lembram de "Titanic"?). Assim, fui com o espírito desarmado, já bastante contente por estar indo ao cinema com a Nikelen. E o resultado foi que, verdadeiramente, não gostei do filme. Me pareceu sem-gosto, com um roteiro tão fraco que nem as referências a outros filmes, nem o carisma dos atores pôde salvar. O filme simplesmente não me "pegou". Não há empatia com uma história pueril e cheia de clichês que não funcionam. Lá pelas tantas, chegava a ser constrangedor e comecei a olhar as horas no celular.

Talvez a maior referência do filme seja "Cantando na Chuva", cujo tema-enredo é quase o mesmo: um grande astro do cinema-mudo tem que se reinventar com a chegada dos filmes falados. A singela diferença é que "Cantando na Chuva" é divertido e nos prende do início ao fim. E olha que não gosto de musicais. Na verdade, eu temei não querendo ver o filme por anos a fio. Até o dia em que a Nikelen me arrastou para a frente da televisão. Foi um dos filmes em que mais ri em toda a vida. Até dos números musicais eu gostei. Já o assisti uma dezena de vezes.

A conclusão da noite foi que nem a telona nem prazer da sala de cinema valeram "O Artista" e que só o chopp e a companhia puderam salvar a noite. Talvez tivesse sido melhor ficar em casa de abrigo e moleton, abrindo um vinho para aproveitar o início do outono e assistindo "Cantando na Chuva" pela décima-primeira vez.


segunda-feira, 19 de março de 2012

Branca de Neve





Meu sobrinho, aos três anos, brincando aos meus pés, com uma motinho: 

“Aí a Banca de Neve subiu na motoca e foi pa foresta.

Aí ela encontou um caçador. A Banca de Neve tava muito baba. Furiosa!

Aí a Banca de Neve pegou uma metalhadora e..... tatatatatata...

Des-to-çô o caçador.

Aí a Banca de Neve subiu na motoca e saiu passeando. 

Aí ela viu uma casinha beeemm pequenininha [ele faz voz baixa e carinha mimosa] onde viviam os Sete Anões.

A Banca de Neve tava muito baba. Furiosa! Aí ela pegou uma metalhadora e.... tatatatatata...

Des-to-çô os Sete Anões.

Aí a Banca de Neve subiu na motoca, foi po catelo e viveu feliz pa sempe.”



sexta-feira, 2 de março de 2012

O sétimo dia




A maioria das pessoas não gosta do domingo. Para muitos, isso se deve ao fato de que é a véspera da segunda. Imagino que o caso seja mais grave para aqueles que não gostam da vida que levam durante a semana, especialmente do seu trabalho. A sexta-feira abre uma impressão de que a pausa na rotina será eterna, ela vem com uma promessa de libertação. Contudo, o domingo traz no seu horizonte o recomeço e desfaz a ilusão. Não é a toa que a melancolia de domingo é mais forte no final da tarde. É claro que existem os que não apreciam esse dia por outras razões.

Eu pertenço à minoria. Gosto do domingo e os motivos são variados. Em primeiro lugar, escolhi uma profissão que não me é demasiadamente penosa. Boa parte do meu trabalho é feito com paixão e diversão. Assim, pensar na segunda-feira não me deprime. Pelo contrário, me anima. Ao lado disso, domingo normalmente é dia de futebol e esperar pelo jogo do final da tarde é parte de um ritual feliz. Mas, sobretudo, eu gosto do caráter de inversão que esse dia tem.

Em várias culturas, através da história, a necessidade de inversão foi tipificada no calendário com pausas, ritos e festas periódicas. A matriz para essa concepção vem do ritmo cíclico da natureza, onde a maioria das coisas nasce, cresce, decai, morre e renasce sob outras formas. Há o tempo da queda e da morte, que acabou por gerar uma demarcação desses períodos nos quais a ordem do mundo é subvertida. É o caso do carnaval, surgido na cultura europeia e também é o caso do domingo. Até hoje, muitas pessoas têm práticas domingueiras que são a perfeita inversão de sua semana: acordar tarde, não trabalhar, excessos à mesa.

Penso nos lugares onde morei, e percebo que eles ritualizam de modo diferente o domingo, mas todos eles com esse caráter de inversão. E, todos eles, misturados na memória com minhas próprias vivências. No Rio Grande do Sul, o domingo é um dia repleto de silêncios, com cheiro de churrasco vindo dos quintais e som de narração de futebol ao final da tarde. No Rio de Janeiro, o domingo é colorido, luminoso, com praias cheias e almoço à meia-tarde. Na França, lembro dos domingos de primavera com os parques repletos e cochilos na grama, sob as árvores.

É sábia a passagem da mitologia judaico-cristã da criação do mundo, em que deus divide o tempo de seu trabalho em sete partes e utiliza a última para descansar. É um aviso: essa parada é necessária para que o cosmos possa renascer na nova semana. Tudo isso se aplica, igualmente, ao período de férias. Trabalhei até o último dia de janeiro. Nas minhas férias, não viajei, corri como louco resolvendo pendências no calor de Santa Maria, que consegue ser saariano em um dia e amazônico no outro. Porém, a mágica se cumpriu mesmo assim. Pactuei comigo mesmo que não leria nada de História nesse período. Pois agora o ano recomeça. Tomo um texto de História entre as mãos para preparar a primeira aula do semestre e também para dar jeito em um capítulo de livro que devo escrever. E uma energia forte e boa percorre o meu corpo. É entusiasmo. O mundo recomeça e eu me sinto renovado.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Terra Sonâmbula, de Mia Couto

Comprei “Terra Sonâmbula”, primeiro romance do escritor moçambicano Mia Couto, há dois ou três anos. Comecei a ler, parei com um terço do livro lido. Tinha intenção de retomar logo, mas não o fiz. Neste fevereiro ardente de férias sem viagem, meti a mão na estante e resolvi tentar a sorte de novo. Comecei a ler e não conseguia parar. Qualquer interrupção me deixava louco de vontade de voltar ao livro. Os enredos se passam em Moçambique, durante a guerra civil que esfarelou as estruturas daquele mundo, e falam de pessoas que têm que inventar um novo modo de viver em meio a esse caos.

 Terra Sonâmbula. Mia Couto. Companhia das Letras,  2007.


O menino Muidinga nada recorda sobre seu passado. Tudo que sabe é o que lhe conta seu companheiro de jornada, o velho Tuahir. Este, com serviço de enterrar corpos em um campo de refugiados, acabou por salvar Muidinga de ser enterrado vivo. Ensinou novamente o menino a andar e falar, mas nada pode informar sobre o que este teria vivido antes. Os dois, então, vagueiam pela estrada em meio às desordens da guerra, aos assaltos dos bandos armados, aos desmandos das autoridades. Tudo é perigo naqueles lugares. Encontram um ônibus carbonizado à beira da estrada e fazem dele um abrigo. Próximo ao veículo percebem uma mala. Dentro, há cadernos onde um tal Kindzu conta sua jornada. Durante o dia, saem para explorar a região. Durante a noite, o menino lê as histórias para o velho. Conforme avançam na leitura, percebem que é como se o ônibus em ruína pudesse mesmo viajar no espaço, porque a paisagem e as gentes que encontram de dia são sempre diferentes. O livro traz ambos os enredos em paralelo.

Eu entendo quase nada da África ou de Moçambique, a não ser algumas referências de pesquisas históricas ou o que me contaram amigos que ali viveram. Com certeza há no livro muito que, para alguém como eu, não é possível alcançar. Há propriedades metafóricas na história do menino sem memória, que vaga em meio à destruição da guerra que se seguiu à independência do país. O menino procura por essa memória, que também pode ser lida como uma busca por identidade e pela capacidade de dar sentido àquele mundo estilhaçado. Do mesmo modo, a relação da tradição com os novos tempos aparece a toda hora. Por exemplo, no fato de Kindzu ter abandonado sua aldeia, deixado de servir aos ancestrais vivos e mortos e, então, ser amaldiçoado pelo espírito de seu pai, que lhe segue na viagem. Ou então na inadequação de uma modernidade importada que rende algumas passagens hilárias, os poucos momentos risíveis em um livro que provoca, mais que isso, um contínuo aperto no peito do leitor. Provavelmente, os personagens a quem se vai encontrando e desfiando as histórias também são caminhos para pensar aquele lugar: Dona Virgínia, o Fazedor de Rios, o velho aldeão Siqueleto, o português Romão Pinto, o administrador Estêvão Jonas.

Porém, como todos os grandes livros, “Terra Sonâmbula” permite diferentes apropriações, rende sonhos e pensares diversificados. Toda a obra é tecida com uma linguagem poética dotada de profundo lirismo, que põe a gente a sentir.

- É o que, mãe?
- É que estou grávida maistravez.
A velha devaneava, sonhatriz. Com aquela idade como poderia ela se duplicar? A voz dela, porém, trazia certezas capazes de me confundir.
- Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo.
- Muito tempo, quanto?
- São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo. Fica assim dentro de mim, me companha o coração.

Por toda parte, há laços que se romperam, familiares, amigos, amantes que se buscam. Kindzu é perseguido pelo espírito de seu pai, o velho Taímo. Porém, por vezes o chama, quer carinhos paternos, muito dificilmente conquistados. É parecido com Muidinga e Tuahir. Este, de certo modo, também pai daquele, porque lhe trouxe para a vida quando estava quase morto. No mesmo caminho está Farida, amor de Kindzu, em busca de seu filho desaparecido. É um mundo roto, onde cada um é um sobrevivente tentando escapar da guerra, seja à procura de seus queridos que se perderam, seja em busca de outro lugar, uma terra em paz. Em meio a tantos fragmentos, contar histórias é quase uma dádiva. Os escritos de Kindzu sobre sua vida são matéria para que Muidinga componha seus próprios sonhos, para que vá conferindo sentido ao mundo que, a custo, procura entender. É Muidinga quem conta essas histórias para Tuahir, que lhe retribui com as suas. E o mesmo ocorre com os diversos personagens que os protagonistas dos dois enredos encontram.

Para mim – um contador de histórias e também filho e também pai – essa foi, de tantas belezas ali encontradas, a principal ressonância do livro de Mia Couto. 


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No Museu D'Orsay

Eu sempre gostei da pintura europeia produzida da segunda metade do século XIX até o Entre-guerras. Desde quando eu nem sabia que era disso que se tratava. Só via os quadros, as cores, a luz e ficava olhando longe. Assim, estar por quatro meses em Paris, em 2006 e não ir ao Museu D’Orsay, onde há enorme coleção de arte impressionista, era algo fora de cogitação. Mas confesso que não foi fácil. O lugar é muito disputado. Na primeira vez em que tentamos, ficamos mais de hora na fila, com chuva e frio, até que desistimos. Na segunda vez, fomos muito intencionados. Aguentamos duas horas e meia e entramos lá. E tudo valeu.
O Orsay é uma antiga estação de trens cuja arquitetura preservada combina perfeitamente com os quadros pintados naquele fin-de-siècle.


Fica à beira do Sena e, se nem houvesse qualquer coisa dentro, já valeria uma visita.

Não se pode fotografar as pinturas, mas o resto pode.

O texto abaixo foi o que escrevi assim que saí de lá. Na época, enviei para alguns amigos. Como vocês poderão ver, pela dicção do texto, o Orsay me lançou um feitço e eu me criancei por vários dias (mas, como vêem pela foto, não era só eu: é comum ver essas turmas inteiras de crianças, fascinadas, a contemplar e perguntar tudo aos professores).

Paris, 13 de maio de 2006
Fomos lá no Orsay e adoramos bastante. Verdade que tinha um punhado de gente atrapalhando de ver os quadros: uns italianos gritando e esparramando as mãos pra tudo quanto é lado; umas alemoas grandonas, maiores que os homens que vão com elas (dizem que são as tais de norvegianas); uns miles de japoneses: tudo correndo de cá pra lá e batendo foto. Dá vontade de botar todos pra fora... Mas deixemos pra lá, que sou um sujeito de raivas muito passageiras.
Tem os quadros!!!! Os do Manet olham pra gente de um jeito tão intenso que encabula. O menino com o pífaro é de ficar horas. Ele toca a flauta e olha pra gente ao mesmo tempo. É uma inquietação. Da mesma forma que todas as pessoas bem brancas contra os fundos escuros que ele gostava tanto. Até umas jovens nuas. Olhando pra gente. Sempre.

Depois, eu entrando numa sala grande, alta e, da porta, vi que lá na outra parede amanhecia. E, ao lado, fazia tarde a pino. Logo adiante, estavam recolhendo os bichos porque estava anoitecendo. Era tudo Pissaro, que eu passei a amar desde já.

Indo adiante, tinha um quadro do Claude Monet no qual recém tinham tomado café e as coisas ainda estavam sobre a mesa, no jardim, as cadeiras vazias levemente afastadas. Em volta da mesa, fazia uma manhã tão morna e o dia prometia ficar tão lindo, que eu quis entrar pra dentro e mandar os Monet tudo embora. Toca daqui porque quem vai morar nessa casa agora sou eu. Tô cobiçando sim! Quem mandou gavar? É pra já que eu trago minha linda, espalho meus livros, boto rádio pra ouvir jogo do Colorado e nunca ninguém vai dizer que isso aqui não sempre foi meu.
Isso sem falar da ponte verde onde um dia eu ainda vou passar lá e respirar bem fundo...
Quando fui ver o Van Gogh tinha tanta gente na frente que eu quis dar uns cotovelaços, mas a Nika não deixou. No entanto, mesmo com aquele barulho todo, os camponeses tiravam uma sesta no amarelo. Campo de feno. Logo, ia chover. E nos outros quadros todas as cores e formas eram muito apropriadas para sonho. Inclusive o azul.

Eu sempre gostei do Degas. Porém, agora gosto mesmo. Pois, como vocês sabem, eu aprecio de coração e de melancolia os quadros do Hopper. Vocês me acreditam que eu estava passando os olhos numa parede e havia um quadro do Degas que tinha o Hopper todo nele?! Foi daquela matéria ali que o Hopper puxou, puxou, esticou, arrumou, botou uns silêncios e criou sua própria obra. Mas ele tem que dar federação ao Degas. Nessas coisas das solidões, o Degas exerce PRIMAZIA.

Mas de tudo, tudo, tudo que eu vi naquele dia; e aí vou incluindo o Sena com a Rive Droite encostada nele; e boto também as moças do Gauguin acarinhadas numa cor de manga madura que eu conheço e amo desde menino; pois de tudo isso, o que me tirou mesmo de mim, e me estendeu pra muito maior do que eu sou, foi mesmo uma pintura do Lautrec. Porque ele, que tudo caricaturava com amargor, pintou uma cena eterna. O quadro se chama

“Dans le lit”

estava em uma sala escura e eu nunca tinha visto... Não tem como descrever. E nem vou tentar. Nem procurem na internet, porque a visão dele aqui, em uma tela de computador, não tem condão. Nem é o mesmo quadro que vendo lá. Um dia vocês vão lá e vejam. E façam dele algo seu. E até posso apostar que ele continuará com vocês, da mesma foram que ele está trespassado em mim, desde então.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O calor, o Leão e um dia nas minhas férias

O calor de uma explosão nuclear deve ser assim. Um calor que queima a pele da gente pelo simples contato com o ar, que encharca, molha, aplasta, pesa e empurra a pessoa contra o chão, tornando heróico o mínimo movimento. O calor é quase sólido, é denso. Andar dentro dele é como tentar mover-se em um soterramento. Verão é bom para quem está de férias e perto do mar. Ou em Curitiba. Mas nunca em Santa Maria, a cidade que me fez amar o inverno ainda mais. Pois é neste calor e nesta cidade, que tenho passado os últimos três dias me deslocando de um canto a outro, tentando receber um dinheiro que o governo me deve. Rapaz, você não tem noção de como o governo é sovina. Na hora de pegar é ali, na fonte. Depois, para devolver o que pegaram errado, é um caminhão de burocracias. É papel pra lá, papel pra cá, tira cópia, imprime, telefona para Porto Alegre, ouve a porcaria da musiquinha de espera, pede pelamordedeus que te mandem um papel assinado, pelo correio. Não mandam, daí eu tiro pela internet e rezo para que aceitem. Aí vai na Cova do Leão, pega uma senha para ser atendido, para pegar uma senha, para agendar um dia na outra semana para ser atendido. Acontece que esse dia era hoje, o horário às 13:35, a temperatura, 39 graus na sombra. Passo em uma loja de Xerox para tirar cópia de 2.485 papeizinhos com notas de despesas médicas. O dono é evangélico, está ouvindo um DVD de um show gospel brasileiro e cantando junto, enquanto faz as cópias. Que mal me pergunte, pra que tanta cópia? É para tentar receber a restituição do imposto de 2009, digo eu. Mas o que foi que te aconteceu? Respondo que a camélia não caiu do galho (ele não ri). Então me envareto um pouco e conto que eram despesas médicas. Ele diz que o governo é uma cambada de sem-vergonhas e que a única coisa que se pode fazer é mandar uns quantos homens-bomba para Brasília, mas que não vai fazer isso porque aqui o povo é tudo frouxo, ALELUIA! Porque os políticos estão tudo com a alma condenada desde que nasceram. Não vê agora é homem com homem, mulher com mulher e querem tirar os crucifixos das paredes, mas Deus está vendo tudo lá de cima, ALELUIA! Rapaz, olha para o que tu tá fazendo e copia direito os papeizinhos porque aqui já faltam dois! Saio de lá arreliado e me assusto com o que parece um tiro, mas era só o cano de uma Yamaha 125 com um gordão em cima. Não posso ver gordo em motocicleta pequena que lembro sempre de um amigo do meu pai, muito mal-educado, que dizia “lá vai o gordo com uma motinho no meio do rabo.” Então vou até o centro da cidade, deixo o carro no estacionamento. Sim, porque tenho carro 1.0 o que é um luxo e sei que estou me queixando de barriga cheia porque a maioria dos habitantes desta cidade depende do péssimo transporte coletivo que há por aqui, em ônibus sem qualquer ar condicionado e nem estariam pleiteando restituição de imposto de renda porque nem tem renda. Mas, mesmo para minha vida de classe média a coisa não estava fácil. Escuitem. Me arrasto então até a Receita Federal suando como uma tampa de panela onde se cozinha um ensopado e, entrando no lugar, passo do Arizona para a Antártida e quase entorto a boca com o ar condicionado marcado em 19 graus lá dentro, mas vão para a ponte que partiu, querem matar os contribuintes, é isso, é? Chego até lá e consigo ser atendido no horário. Mas me informam que, provavelmente, só vou receber metade do que me devem e sabe-se lá quando. Eu olho feio, mas o Leão nem te ligo. Saio de lá ainda com mais raiva, agora da Antártida para o Saara e acho que vou ter um treco. Quando chego em casa, tomo um banho e me sento em frente ao ventilador pensando que hoje não vou à fisioterapia. Sim, porque velho não faz esporte, nem academia, velho faz fisioterapia. Lá são todos muito queridos e competentes, mas na penúltima vez que eu fui tocava uma música new age de fundo, algo como cachoeira com flauta pan e eu já não agüentava mais e comecei a ficar com vontade de ir ao banheiro. Então entrei nessa baboseira de força do pensamento e pensei forte para que aquilo parasse e descobri que isso funciona mesmo, você pede e o universo atende, só que o universo tem um senso de humor filhodumaputadocaralho e dois velhos oficiais do exército aposentados, na sala ao lado, começaram a se entusiasmar em uma conversa sobre como era bom o tempo do regime militar e eu ali no escuro, ouvindo aquela conversa, todo amarrado e tomando choque me senti num porão da ditadura, credo, sai de mim. Não... hoje não vou a lugar nenhum. Vou ficar em casa e aproveitar o resto deste maravilhoso dia de férias de verão.

Salário digno aos professores - governos não têm desculpa

Excelente matéria de Felipe Prestes no Sul21 vai aos dados e mostra que o setor da educação tem 60% do funcionalismo, mas consome apenas 30% da folha de pagamento do estado do RS. Os dados são do DIEESE. Ao lerem a matéria, notem a enorme fatia ocupada pelo Poder Executivo nos gastos com a folha de pagamento. A desigualdade não era tão grande no governo Olívio Dutra (PT) e vem piorando nos governos de Germano Rigotto (PMDB) e da governadora que lhe sucedeu (PSDB). O governo Tarso Genro (PT) usou, novamente, a cantilena de que não se pode dar dignidade salarial aos professores em razão da folha de pagamento. Nunca convenceu. Agora, se pode ver o porquê.

Assim, os argumentos que tentam naturalizar a injustiça trágica do salário do magistério estadual não se sustentam. Argumento falso, como se vê na matéria. O que falta, sim, é VONTADE POLÍTICA. E isso se resolve na seara da política: protesto, negociação, pressão. Se pagarem os professores com justiça, o estado não vai falir, não virá o apocalipse, só o que acontecerá é que a educação de nossas crianças e jovens vai melhorar de qualidade. Mas será preciso fazer ajustes, sim. E, para variar, seria interessante que os governos ousassem, fizessem algo novo e não sangrassem a carne do magistério, já tão repetidamente violentada.

LEIA A MATÉRIA COMPLETA, aqui

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Verdade

Eu tinha dez anos quando ataquei um padre com um paradoxo.

Eu cursava o tal catecismo, para poder fazer a primeira comunhão. Eu ia à missa, às vezes, levado pela minha avó, que era muito católica, filha de imigrante italiano. Aí chegou a hora de fazer a confissão. Sim, porque para comungar com a glória de Cristo é preciso, primeiro, reconhecer os próprios pecados, pagar penitência e ser absolvido deles.

Eu tinha um pouco de medo daquele negócio de confessionário, a pessoa de joelhos falando para uma cortina. Sabe-se lá quem estava do outro lado. Talvez prevendo reações como a minha, o padre João mudou a estratégia e resolveu confessar os neófitos na sacristia, sentado em uma cadeira, frente a frente com ele. Acho que o padre João era boa gente, porque andava com a camisa do Inter e jogava bola no campinho.

Eu entrei, sem ter ideia do que dizer. Então ele me perguntou se eu tinha algum pecado. Pensei e disse: eu brigo com o meu irmão. Só isso? Perguntou ele. Daí pensei mais um pouco: ah... e às vezes eu minto. 

Hum... Só isso? É, eu respondi. Ele ficou me olhando por um instante. 

Mas às vezes tu mente? Sim, às vezes eu minto.

Novo silêncio. Ele sem saber direito como sair da situação. Tá mentindo agora? Não, respondi.

Mas às vezes tu mente, né? (Eu comecei a me divertir de verdade). Sim, falei devagar, às vezes eu m-i-n-t-o. Ele olhou para os lados de novo. Era bonito ver como lutava. Não queria se dar por vencido. Até que não aguentou.

- Bá... então tá... reza dois pais-nossos e te arranca daqui!


sábado, 4 de fevereiro de 2012

Contos de Futebol, de Aldyr Garcia Schlee




Eu nunca havia lido o Aldyr Garcia Schlee. Conhecia-o por ouvir dizer. Um escritor, morador da fronteira com o Uruguai e o homem que criou o uniforme canarinho da Seleção Brasileira, ao ganhar um concurso, em 1953. Depois, uma amiga foi a um evento sobre o pampa, em Jaguarão, e voltou encantada com a fala que o Schlee fez lá. Então, assisti a “O Banheiro do Papa”, belo filme uruguaio, baseado em um conto seu. Por fim, li esta entrevista que o Iuri Müller e o Maurício Brum fizeram com ele.

Pois acabo de ler pela primeira vez um livro dele “Contos de Futebol”. Publicado, anteriormente, no Uruguai, chega agora em português pela editora Ardotempo. Nada de surpreendente para um autor que cresceu na fronteira, que escreve em português e em espanhol, que criou o uniforme da Seleção do Brasil e sempre viveu o futebol uruguaio com enorme intensidade.

A obra de Schlee é trabalho de fronteiriço e os contos se passam todos na ampla zona de fronteira entre Brasil e Uruguai, ou têm referência a sujeitos que perambulam de uma a outra parte; e também família e grupos de amigos e casais de amantes que nasceram aqui e lá, e que se encontram. A maior parte da ação vai de uma velha casa de aluguel em Pelotas, no sul do Rio Grande, até as tribunas do Estádio Centenário, em Montevidéu. E, sobretudo, Jaguarão.

Mas há também o Maracanã, Buenos Aires e a Inglaterra, principalmente se considerarmos que os personagens viajam a estes lugares pelas ondas dos grandes aparelhos de rádio, pelas notícias de jornal, pelos álbuns de fotografias com os jogadores das copas de 1930 e 1950, pelo que os outros contam, pela esperança e pela memória. Essa geografia imaginada está bem viva no peito e na mente dos habitantes daquelas paragens: meninos cheios de sonho, moças que ficaram por casar, mentirosos ordinários, gente que deixou de partilhar a razão de todos os outros.

O futebol está em todas as histórias, mas em cada uma de modo muito diferente. É direto e apaixonado em algumas e aparece apenas de raspão em outras. Para um amante do esporte como eu, alguém que sabe que esse amor é algo que se imprime na gente desde pequeno, bateram fortes contos como “Aquela tarde impossível” e “Encanto de Futebol”, que unem futebol e meninice – pode haver algo mais importante que uma tarde de futebol para um guri?

Porém, os contos de que mais gostei foram “Maria Adelia”, “Jim”, “Empate” e “O pardo Maciel”. Nos dois primeiros, o futebol é apenas um coadjuvante. Em todos, o que está presente é o mistério e a incerteza da vida. E a paixão por imaginar o que teria ocorrido com este ou aquele. Os personagens se fazem essas perguntas. As escolhas narrativas do autor, com foco variando entre diversos personagens secundários, permitem que se fale de perto, mas nem sempre contando com a certeza sobre as motivações e, por vezes, mesmo sobre os acontecimentos. É a dicção do contador de histórias utilizada na medida certa, sem concessões, porém com verdadeira compaixão (eu diria, com companheirismo) pelas existências de seus personagens.

Vou ler mais de Aldyr Garcia Schlee.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O campus no verão

Ficar trabalhando no campus da UFSM, no verão, presenteia a gente com o estranhamento. 

Há imensas ausências: das pessoas, das práticas habituais, do burburinho. Livre da normalidade que preenche tudo, o espaço se mostra, permite-se o vazio e a imensidão. Pode-se ver o silêncio.




Então, há pequenas salas, grupos de pessoas, árvores, que passavam despercebidas e cujos rumores agora vibram. 



Os prédios do campus são retos, sem graça, puro cimento e vidro. Estão dispostos em grupos, mas cada grupo longe do outro, com muito espaço entre eles. Isso faz com que eu ande por ali olhando tudo como quem está dentro de um sonho.


Sem que se faça nenhum esforço, vem até nós a percepção de estar em um mundo diferente e inquietante.


sábado, 28 de janeiro de 2012

Monty Python, o sonho não acabou

A maioria de nós tem ídolos. Os jovens, especialmente, parecem buscá-los com fúria e fome. E cultivá-los, às vezes transformando-os em emblema e expressão de sua forma de estar no mundo.

Quando eu era adolescente, meus amigos enchiam as paredes de seus quartos com fotos e poemas e quadros do Pink Floyd, Led Zeppelin, Che, García Lorca, Neruda, John Lenon, Bob Marley, U2, Mandela.

Eu gostava de alguns desses. E de outros que não estão nesta lista. Mas me mantinha vigilante contra todo tipo de idolatria. Um pouco por soberba, afinal, aos 16 anos, eu era pura pretensão. Mas muito por uma atitude cínica que me indicava que ninguém merecia tamanha adesão, que eu iria quebrar a cara quando descobrisse que meus heróis eram humanos, cheios de falhas, de vexames.

Essa mesma atitude, porém, me preparou para receber os filmes dos Pythons com um impacto inesperado. O non-sense, o humor absurdo, a crítica mais do que inteligente, genial. Foi assim que, para louvor ao deus dos paradoxos, me tornei um fã. E eles, que tanto repetiram “vocês têm que pensar pelas próprias cabeças”, se tornaram ídolos. A vida é mesmo engraçada.



Um amigo meu ganhou uma filmadora VHS. Uma coisa espantosa. Enorme. Formamos um grupo e fizemos duas sub-produções mimetizando (e muito mal, é claro) o humor dos Pythons, igualzinho aos outros guris que construíam bandas de garagem, imitando seus heróis. Assisti arrepiado, felicíssimo e meio enlouquecido ao primeiro documentário em que os via em vida civil, falando mal uns dos outros, lembrando ora divertidos, ora melancólicos, ora furiosos dos tempos em que pertenciam ao grupo.

Eles satirizaram com muita inteligência o absurdo presente em tudo: no mito fundador da pátria inglesa (Em busca do Cálice Sagrado), na religião (A vida de Brian) e na própria existência (O sentido da vida). Fiéis a si mesmos, nem o funeral de seu grande integrante, Graham Chapmam, em 1989, escapou.



Eu decorei as falas dos filmes, e até hoje reajo a situações cotidianas com algumas delas, sobretudo as de “A vida de Brian”: “é... mas isso não é culpa de ninguém, nem dos romanos”, “fizeram tudo isso e o que foi que eles nos deram em troca? – Um Aqueduto... – Cala Boca!”, “isso, vá... seja crucificado, não pensa na sua pobre mãe...”

Pois agora, o Igor Natusch compartilha uma notícia veiculada neste blog,  dando conta da possibilidade dos ingleses se reunirem de novo, ainda que sem Chapmam, naturalmente. E eu, imediatamente, abro outra tela e começo a escrever esse texto. Espero que isso se confirme.

Viva os Pythons, com sua genialidade e seus defeitos.  Afinal, o que nos resta ante ao caos e a falta de sentido, senão rir e olhar sempre para o lado brilhante da vida?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Inter 1x0 Once Caldas - Sobre Heróis e Tumbas






A verdade é que tudo podia acontecer depois da nuvem negra de tormentos que se estabeleceu no Beira-Rio com a saída iminente de D'Alessandro, seduzido por uma montanha de dinheiro oferecido por um clube da China (esses capitalistas nojentos). Nestas semanas, assistimos aos arautos da desgraça encheram blogs e microfones vaticinando o fracasso na Libertadores, antes mesmo dela ter começado e fazendo o balanço com perda total do ano futebolístico ainda em janeiro.

 Porém, o Inter jogou um grande primeiro tempo. D'Alessandro foi impecável. Deu um passe de sinuca para o gol, me fazendo pensar que se deveria ceder à chantagem do gringo e entregar-lhe os direitos federativos de Damião e Oscar, mais um pedaço do Beira-Rio (que ainda não cederam à construtora), para que ficasse. Damião segue passando o jogo inteiro com a mão nas costas e a cara feia, mas pelo menos voltou a se atirar como um louco na bola. E a marcar gols. 


No segundo tempo, o time desandou. A maioria dos comentaristas colocou a culpa no pouco tempo de preparação física. Não há dúvida que os esbagaçamento evidente do time colaborou para a queda de rendimento. Mas é tapar o sol com a peneira não perceber que Pompilio Paez, o técnico com nome de presidente, re-organizou seu time para um 3-4-3 ainda no primeiro tempo e foi encaixando a marcação e amarrou o Inter na etapa final. O que me assusta é que me pareceu que Dorival Junior também não percebeu o fato.

Para grande espanto de todos, a zaga teve atuação segura durante todo o jogo. Guiñazú “El perro loco” corria como se fosse meio de temporada e ele tivesse 18 anos. Bolatti é titular e ponto final. O minúsculo Marcos Aurélio entrou muito mal, mas é bom jogador e há de se recuperar.

No final do jogo, ficou a quase-certeza da saída de D’Alessandro. Se ficar, será por uma salário que vai dificultar a “administração do grupo” (eufemismo para “ganância desmedida e absoluta dos jogadores de futebol por um punhado de dólares”). Ouvi o gringo dizer que a torcida do Inter tem que saber que ele se doou 100% em todas as partidas. Bobagem, já que isso não passa da obrigação de quem ganha centenas de milhares de reais, e acha pouco. Eu cheguei a pensar que era burrice o D’Ale abandonar a chance de ir à Copa e toda a idolatria que tem no Inter para ir esconder-se atrás de uma muralha de dinheiro chinês. Mas então pensei que ele pode ter considerado essa hipótese sim. E aí pensou que já está com 31 anos. E, logo, não terá mais a energia que lhe propulsiona o talento. E seu rendimento decairá. Com ele, também a idolatria. Será cobrado, aguentará a frustração da torcida, perderá o estrelato. Não seria então melhor sair no auge e ir saquear os portos chineses? D’Alessandro não é bobo. Nunca foi.

Se tudo for para o rumo que parece mesmo ir, haverá necessidade de muito trabalho e talento no Beira-Rio. Não que D’Alessandro seja genial, nem que não haja outros bons jogadores no colorado. Mas o modo como o Inter se organiza, como encaminha o andamento do jogo, é muito difícil de manter sem ele. O gringo é a peça-chave da forma de jogar que o time aprendeu nos últimos três anos. Posse de bola, Kleber, Dale, Guiñazú, Dale, Oscar, Dale, Damião, gol!

Não é o fim do mundo, como disseram os exagerados. Mas o Inter terá que se reinventar.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A agressão aos moradores do Pinheirinho: algumas perplexidades

Sou um sujeito lento. Não consigo acompanhar tudo que se tem produzido na mídia, especialmente a eletrônica, sobre tudo quanto acontece a todo tempo no mundo inteiro. Tanta informação é coisa de enlouquecer. Muito já foi dito, instantaneamente, sobre a violência sofrida pelos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Entre tantas, recomento este editorial do Sul21. O que registro aqui são apenas algumas de minhas perplexidades com o caso.


http://maierovitch.blog.terra.com.br/2012/01/23/pinheirinho-e-o-uso-precipitado-da-forca-publica/

Eram milhares de mulheres, homens, velhos quebrados de uma vida de serviço, trabalhadores, migrantes fugidos da seca e da fome no nordeste, pobres, crianças de colo, crianças. Crianças. Crianças. Crianças. Ocupavam ilegalmente uma área que pertencia à massa falida de um especulador criminoso. Foram expulsos de suas casas pela polícia, por ordem da justiça. Velhos. Crianças. Famílias. Crianças. 

Crianças.

Crianças.

Crianças.

Uma solução política poderia ter sido feita. Deveria ter sido. Os políticos são pagos pelo dinheiro de quem paga impostos. Estes são gerados pelo trabalho daquela gente. A polícia também. E o juízes. Uma solução política. Sim, sim, já se tentava há muito tempo. Era preciso tentar mais. É para isso que se paga políticos. E a formação de juízes e delegados. É para isso que se paga cursos de Direito.

As cidades brasileiras estão se transformando em monstros inviáveis. Impensáveis. Em quimeras urbanas. Mas não há o que se fazer senão lutar contra o monstro. 

Famílias inteiras, suas casas derrubadas. Anos de trabalho. Juntar salário, comprar material, fazer a casa. Morar lá, com a sua família.

As versões da mídia televisiva foram, em maioria, fantasiosas. Narraram o que não houve. Omitiram. Misturaram. Estudaram como fazer para melhor confundir.

Que direito de propriedade é esse que promove tanta barbárie? Que arranca a casa de velhos, de crianças? 

Crianças.

A ação tinha base legal. É verdade. Quando se destrói a casa de moradia de milhares de famílias pobres para defender o direito absoluto de propriedade de um especulador, não são os ocupantes que estão errados. É a lei. 

E o sistema que gera a lei.



sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Larry e Maria

Certa vez, um amigo disse que não entendia como eu podia gostar desse filme. É que eu sou bobo, respondi. Eu gosto da música, gosto da história, sei alguns diálogos de cor (e os utilizo no dia a dia!), gosto demais da Maria e do Larry. Eles estão no meu primeiro círculo de afetos.

E esta cena é belíssima.