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segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pais e filhos


Meu avô paterno era um homem sério. E antiquíssimo. Nasceu em 1902 e viveu quase um século. Era duro com os filhos. Há uma lenda familiar que atribui a ele uma regra disciplinar para Salomão nenhum botar defeito: um filho aprontava, todos os sete apanhavam. Assim, uns impediam os outros de fazer estrepolias. Era um tempo em que carinho físico entre pai e filho não se praticava. Ao menos não era o normal. Carinho era dar exemplo de trabalho, honestidade. Carinho era levantar todos os dias antes do sol nascer, para botar comida na mesa. Pensando assim, não deixa de ter alguma lógica. Mas qualquer gesto explícito de afeto entre pai e filho era desaconselhável, porque sinalizava fraqueza. E a formação dos homens não admitia isso. Talvez uma das grandes conquistas dos últimos 40 anos seja, exatamente, a superação desses valores. Não vivi aquele tempo, mas tenho a nítida impressão de que é muito melhor ser homem agora. Neste e em outros sentidos, a luta pela igualdade entre os sexos é libertadora também para os homens.

Meu pai entendia o velho dele. Mesmo com a doença dificultando seus movimentos, o pai seguia pegando o ônibus de Santa Maria para Jaguari, mais de duas horas de viagem, para passar três dias por semana com o vô. A terapia para as frustrações da infância, como sempre no caso do meu pai, vinha disfarçada em humor. Ele contava que, certa feita, tinha sete anos e meu avô era candidato a prefeito. Foram para o interior do município e lá se formou uma fila de crianças que iam chegando ao meu avô, que lhes abraçava e beijava. Meu pai viu a oportunidade e nem pensou duas vezes. Entrou na fila também. Quando chegou a sua vez, o vô o abraçou. Porém, notando de quem se tratava, soltou-o rapidamente, quase jogando-o no chão e reclamou, brusco: “ahh não guri... é tu...”.

***

Então os últimos dias trouxeram o fim do calorão o que é sempre bom e o outono aqui tem uma luz que acaricia a gente. Mesmo assim, foi um acúmulo de incômodos e contratempos, uns bens recentes, outros tão antigos que não consigo precisar quando iniciaram. Adoro meu trabalho, mas esta é uma época de afazeres burocráticos, com prazos a cumprir, o que me tira do sério, e também outros dramas inúteis a resolver. Ou para serenar o que não se pode resolver (porque depende da loucura dos outros e não da minha). Mas é difícil serenar quando se está na Roda Viva, então tudo vai ficando mais demorado do que devia. E hoje à noite só eu e o Miguel em casa, porque a mãe dele está viajando a trabalho e brinquei bastante com ele, depois o coloquei na cama. E ele pediu para eu deitar com ele enquanto via um filminho. Ele então rolou para todos os lados e me chutou e amassou o quanto pôde e até cantar cantou. Eu todo torto e já meio brabo de estar conseguindo um torcicolo e ter que acordar cedo amanhã. Depois de tanta agitação, ele foi acalmando até que, quase dormindo, me olhou bem faceiro e disse, sem motivo ou provocação, do alto dos seus três anos, feitos ontem, “Pai... eu te amo...” E me abraçou como nem sei explicar e nem quero saber do que carrego de ontem, nem quero saber de amanhã, nem nada que não seja o fato de que, hoje, a noite voa leve e serena, como um balão cruzando o céu.


quarta-feira, 28 de março de 2012

O Artista e Cantando na Chuva

Uma combinação de prazos a cumprir, filho pequeno e variadas demandas familiares me afastou do cinema nos últimos meses. Eu queria quebrar o jejum com "A invenção de Hugo Cabret". Estava marcado, mas não deu.

Ontem, depois de alguma engenharia de horários, conseguimos nos organizar. Fui assistir a "O Astista", sem esperar muito do filme. O Oscar não é nenhuma garantia de qualidade, como provam algumas porcarias retumbantes (lembram de "Titanic"?). Assim, fui com o espírito desarmado, já bastante contente por estar indo ao cinema com a Nikelen. E o resultado foi que, verdadeiramente, não gostei do filme. Me pareceu sem-gosto, com um roteiro tão fraco que nem as referências a outros filmes, nem o carisma dos atores pôde salvar. O filme simplesmente não me "pegou". Não há empatia com uma história pueril e cheia de clichês que não funcionam. Lá pelas tantas, chegava a ser constrangedor e comecei a olhar as horas no celular.

Talvez a maior referência do filme seja "Cantando na Chuva", cujo tema-enredo é quase o mesmo: um grande astro do cinema-mudo tem que se reinventar com a chegada dos filmes falados. A singela diferença é que "Cantando na Chuva" é divertido e nos prende do início ao fim. E olha que não gosto de musicais. Na verdade, eu temei não querendo ver o filme por anos a fio. Até o dia em que a Nikelen me arrastou para a frente da televisão. Foi um dos filmes em que mais ri em toda a vida. Até dos números musicais eu gostei. Já o assisti uma dezena de vezes.

A conclusão da noite foi que nem a telona nem prazer da sala de cinema valeram "O Artista" e que só o chopp e a companhia puderam salvar a noite. Talvez tivesse sido melhor ficar em casa de abrigo e moleton, abrindo um vinho para aproveitar o início do outono e assistindo "Cantando na Chuva" pela décima-primeira vez.


segunda-feira, 19 de março de 2012

Branca de Neve





Meu sobrinho, aos três anos, brincando aos meus pés, com uma motinho: 

“Aí a Banca de Neve subiu na motoca e foi pa foresta.

Aí ela encontou um caçador. A Banca de Neve tava muito baba. Furiosa!

Aí a Banca de Neve pegou uma metalhadora e..... tatatatatata...

Des-to-çô o caçador.

Aí a Banca de Neve subiu na motoca e saiu passeando. 

Aí ela viu uma casinha beeemm pequenininha [ele faz voz baixa e carinha mimosa] onde viviam os Sete Anões.

A Banca de Neve tava muito baba. Furiosa! Aí ela pegou uma metalhadora e.... tatatatatata...

Des-to-çô os Sete Anões.

Aí a Banca de Neve subiu na motoca, foi po catelo e viveu feliz pa sempe.”



sexta-feira, 2 de março de 2012

O sétimo dia




A maioria das pessoas não gosta do domingo. Para muitos, isso se deve ao fato de que é a véspera da segunda. Imagino que o caso seja mais grave para aqueles que não gostam da vida que levam durante a semana, especialmente do seu trabalho. A sexta-feira abre uma impressão de que a pausa na rotina será eterna, ela vem com uma promessa de libertação. Contudo, o domingo traz no seu horizonte o recomeço e desfaz a ilusão. Não é a toa que a melancolia de domingo é mais forte no final da tarde. É claro que existem os que não apreciam esse dia por outras razões.

Eu pertenço à minoria. Gosto do domingo e os motivos são variados. Em primeiro lugar, escolhi uma profissão que não me é demasiadamente penosa. Boa parte do meu trabalho é feito com paixão e diversão. Assim, pensar na segunda-feira não me deprime. Pelo contrário, me anima. Ao lado disso, domingo normalmente é dia de futebol e esperar pelo jogo do final da tarde é parte de um ritual feliz. Mas, sobretudo, eu gosto do caráter de inversão que esse dia tem.

Em várias culturas, através da história, a necessidade de inversão foi tipificada no calendário com pausas, ritos e festas periódicas. A matriz para essa concepção vem do ritmo cíclico da natureza, onde a maioria das coisas nasce, cresce, decai, morre e renasce sob outras formas. Há o tempo da queda e da morte, que acabou por gerar uma demarcação desses períodos nos quais a ordem do mundo é subvertida. É o caso do carnaval, surgido na cultura europeia e também é o caso do domingo. Até hoje, muitas pessoas têm práticas domingueiras que são a perfeita inversão de sua semana: acordar tarde, não trabalhar, excessos à mesa.

Penso nos lugares onde morei, e percebo que eles ritualizam de modo diferente o domingo, mas todos eles com esse caráter de inversão. E, todos eles, misturados na memória com minhas próprias vivências. No Rio Grande do Sul, o domingo é um dia repleto de silêncios, com cheiro de churrasco vindo dos quintais e som de narração de futebol ao final da tarde. No Rio de Janeiro, o domingo é colorido, luminoso, com praias cheias e almoço à meia-tarde. Na França, lembro dos domingos de primavera com os parques repletos e cochilos na grama, sob as árvores.

É sábia a passagem da mitologia judaico-cristã da criação do mundo, em que deus divide o tempo de seu trabalho em sete partes e utiliza a última para descansar. É um aviso: essa parada é necessária para que o cosmos possa renascer na nova semana. Tudo isso se aplica, igualmente, ao período de férias. Trabalhei até o último dia de janeiro. Nas minhas férias, não viajei, corri como louco resolvendo pendências no calor de Santa Maria, que consegue ser saariano em um dia e amazônico no outro. Porém, a mágica se cumpriu mesmo assim. Pactuei comigo mesmo que não leria nada de História nesse período. Pois agora o ano recomeça. Tomo um texto de História entre as mãos para preparar a primeira aula do semestre e também para dar jeito em um capítulo de livro que devo escrever. E uma energia forte e boa percorre o meu corpo. É entusiasmo. O mundo recomeça e eu me sinto renovado.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No Museu D'Orsay

Eu sempre gostei da pintura europeia produzida da segunda metade do século XIX até o Entre-guerras. Desde quando eu nem sabia que era disso que se tratava. Só via os quadros, as cores, a luz e ficava olhando longe. Assim, estar por quatro meses em Paris, em 2006 e não ir ao Museu D’Orsay, onde há enorme coleção de arte impressionista, era algo fora de cogitação. Mas confesso que não foi fácil. O lugar é muito disputado. Na primeira vez em que tentamos, ficamos mais de hora na fila, com chuva e frio, até que desistimos. Na segunda vez, fomos muito intencionados. Aguentamos duas horas e meia e entramos lá. E tudo valeu.
O Orsay é uma antiga estação de trens cuja arquitetura preservada combina perfeitamente com os quadros pintados naquele fin-de-siècle.


Fica à beira do Sena e, se nem houvesse qualquer coisa dentro, já valeria uma visita.

Não se pode fotografar as pinturas, mas o resto pode.

O texto abaixo foi o que escrevi assim que saí de lá. Na época, enviei para alguns amigos. Como vocês poderão ver, pela dicção do texto, o Orsay me lançou um feitço e eu me criancei por vários dias (mas, como vêem pela foto, não era só eu: é comum ver essas turmas inteiras de crianças, fascinadas, a contemplar e perguntar tudo aos professores).

Paris, 13 de maio de 2006
Fomos lá no Orsay e adoramos bastante. Verdade que tinha um punhado de gente atrapalhando de ver os quadros: uns italianos gritando e esparramando as mãos pra tudo quanto é lado; umas alemoas grandonas, maiores que os homens que vão com elas (dizem que são as tais de norvegianas); uns miles de japoneses: tudo correndo de cá pra lá e batendo foto. Dá vontade de botar todos pra fora... Mas deixemos pra lá, que sou um sujeito de raivas muito passageiras.
Tem os quadros!!!! Os do Manet olham pra gente de um jeito tão intenso que encabula. O menino com o pífaro é de ficar horas. Ele toca a flauta e olha pra gente ao mesmo tempo. É uma inquietação. Da mesma forma que todas as pessoas bem brancas contra os fundos escuros que ele gostava tanto. Até umas jovens nuas. Olhando pra gente. Sempre.

Depois, eu entrando numa sala grande, alta e, da porta, vi que lá na outra parede amanhecia. E, ao lado, fazia tarde a pino. Logo adiante, estavam recolhendo os bichos porque estava anoitecendo. Era tudo Pissaro, que eu passei a amar desde já.

Indo adiante, tinha um quadro do Claude Monet no qual recém tinham tomado café e as coisas ainda estavam sobre a mesa, no jardim, as cadeiras vazias levemente afastadas. Em volta da mesa, fazia uma manhã tão morna e o dia prometia ficar tão lindo, que eu quis entrar pra dentro e mandar os Monet tudo embora. Toca daqui porque quem vai morar nessa casa agora sou eu. Tô cobiçando sim! Quem mandou gavar? É pra já que eu trago minha linda, espalho meus livros, boto rádio pra ouvir jogo do Colorado e nunca ninguém vai dizer que isso aqui não sempre foi meu.
Isso sem falar da ponte verde onde um dia eu ainda vou passar lá e respirar bem fundo...
Quando fui ver o Van Gogh tinha tanta gente na frente que eu quis dar uns cotovelaços, mas a Nika não deixou. No entanto, mesmo com aquele barulho todo, os camponeses tiravam uma sesta no amarelo. Campo de feno. Logo, ia chover. E nos outros quadros todas as cores e formas eram muito apropriadas para sonho. Inclusive o azul.

Eu sempre gostei do Degas. Porém, agora gosto mesmo. Pois, como vocês sabem, eu aprecio de coração e de melancolia os quadros do Hopper. Vocês me acreditam que eu estava passando os olhos numa parede e havia um quadro do Degas que tinha o Hopper todo nele?! Foi daquela matéria ali que o Hopper puxou, puxou, esticou, arrumou, botou uns silêncios e criou sua própria obra. Mas ele tem que dar federação ao Degas. Nessas coisas das solidões, o Degas exerce PRIMAZIA.

Mas de tudo, tudo, tudo que eu vi naquele dia; e aí vou incluindo o Sena com a Rive Droite encostada nele; e boto também as moças do Gauguin acarinhadas numa cor de manga madura que eu conheço e amo desde menino; pois de tudo isso, o que me tirou mesmo de mim, e me estendeu pra muito maior do que eu sou, foi mesmo uma pintura do Lautrec. Porque ele, que tudo caricaturava com amargor, pintou uma cena eterna. O quadro se chama

“Dans le lit”

estava em uma sala escura e eu nunca tinha visto... Não tem como descrever. E nem vou tentar. Nem procurem na internet, porque a visão dele aqui, em uma tela de computador, não tem condão. Nem é o mesmo quadro que vendo lá. Um dia vocês vão lá e vejam. E façam dele algo seu. E até posso apostar que ele continuará com vocês, da mesma foram que ele está trespassado em mim, desde então.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O calor, o Leão e um dia nas minhas férias

O calor de uma explosão nuclear deve ser assim. Um calor que queima a pele da gente pelo simples contato com o ar, que encharca, molha, aplasta, pesa e empurra a pessoa contra o chão, tornando heróico o mínimo movimento. O calor é quase sólido, é denso. Andar dentro dele é como tentar mover-se em um soterramento. Verão é bom para quem está de férias e perto do mar. Ou em Curitiba. Mas nunca em Santa Maria, a cidade que me fez amar o inverno ainda mais. Pois é neste calor e nesta cidade, que tenho passado os últimos três dias me deslocando de um canto a outro, tentando receber um dinheiro que o governo me deve. Rapaz, você não tem noção de como o governo é sovina. Na hora de pegar é ali, na fonte. Depois, para devolver o que pegaram errado, é um caminhão de burocracias. É papel pra lá, papel pra cá, tira cópia, imprime, telefona para Porto Alegre, ouve a porcaria da musiquinha de espera, pede pelamordedeus que te mandem um papel assinado, pelo correio. Não mandam, daí eu tiro pela internet e rezo para que aceitem. Aí vai na Cova do Leão, pega uma senha para ser atendido, para pegar uma senha, para agendar um dia na outra semana para ser atendido. Acontece que esse dia era hoje, o horário às 13:35, a temperatura, 39 graus na sombra. Passo em uma loja de Xerox para tirar cópia de 2.485 papeizinhos com notas de despesas médicas. O dono é evangélico, está ouvindo um DVD de um show gospel brasileiro e cantando junto, enquanto faz as cópias. Que mal me pergunte, pra que tanta cópia? É para tentar receber a restituição do imposto de 2009, digo eu. Mas o que foi que te aconteceu? Respondo que a camélia não caiu do galho (ele não ri). Então me envareto um pouco e conto que eram despesas médicas. Ele diz que o governo é uma cambada de sem-vergonhas e que a única coisa que se pode fazer é mandar uns quantos homens-bomba para Brasília, mas que não vai fazer isso porque aqui o povo é tudo frouxo, ALELUIA! Porque os políticos estão tudo com a alma condenada desde que nasceram. Não vê agora é homem com homem, mulher com mulher e querem tirar os crucifixos das paredes, mas Deus está vendo tudo lá de cima, ALELUIA! Rapaz, olha para o que tu tá fazendo e copia direito os papeizinhos porque aqui já faltam dois! Saio de lá arreliado e me assusto com o que parece um tiro, mas era só o cano de uma Yamaha 125 com um gordão em cima. Não posso ver gordo em motocicleta pequena que lembro sempre de um amigo do meu pai, muito mal-educado, que dizia “lá vai o gordo com uma motinho no meio do rabo.” Então vou até o centro da cidade, deixo o carro no estacionamento. Sim, porque tenho carro 1.0 o que é um luxo e sei que estou me queixando de barriga cheia porque a maioria dos habitantes desta cidade depende do péssimo transporte coletivo que há por aqui, em ônibus sem qualquer ar condicionado e nem estariam pleiteando restituição de imposto de renda porque nem tem renda. Mas, mesmo para minha vida de classe média a coisa não estava fácil. Escuitem. Me arrasto então até a Receita Federal suando como uma tampa de panela onde se cozinha um ensopado e, entrando no lugar, passo do Arizona para a Antártida e quase entorto a boca com o ar condicionado marcado em 19 graus lá dentro, mas vão para a ponte que partiu, querem matar os contribuintes, é isso, é? Chego até lá e consigo ser atendido no horário. Mas me informam que, provavelmente, só vou receber metade do que me devem e sabe-se lá quando. Eu olho feio, mas o Leão nem te ligo. Saio de lá ainda com mais raiva, agora da Antártida para o Saara e acho que vou ter um treco. Quando chego em casa, tomo um banho e me sento em frente ao ventilador pensando que hoje não vou à fisioterapia. Sim, porque velho não faz esporte, nem academia, velho faz fisioterapia. Lá são todos muito queridos e competentes, mas na penúltima vez que eu fui tocava uma música new age de fundo, algo como cachoeira com flauta pan e eu já não agüentava mais e comecei a ficar com vontade de ir ao banheiro. Então entrei nessa baboseira de força do pensamento e pensei forte para que aquilo parasse e descobri que isso funciona mesmo, você pede e o universo atende, só que o universo tem um senso de humor filhodumaputadocaralho e dois velhos oficiais do exército aposentados, na sala ao lado, começaram a se entusiasmar em uma conversa sobre como era bom o tempo do regime militar e eu ali no escuro, ouvindo aquela conversa, todo amarrado e tomando choque me senti num porão da ditadura, credo, sai de mim. Não... hoje não vou a lugar nenhum. Vou ficar em casa e aproveitar o resto deste maravilhoso dia de férias de verão.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Verdade

Eu tinha dez anos quando ataquei um padre com um paradoxo.

Eu cursava o tal catecismo, para poder fazer a primeira comunhão. Eu ia à missa, às vezes, levado pela minha avó, que era muito católica, filha de imigrante italiano. Aí chegou a hora de fazer a confissão. Sim, porque para comungar com a glória de Cristo é preciso, primeiro, reconhecer os próprios pecados, pagar penitência e ser absolvido deles.

Eu tinha um pouco de medo daquele negócio de confessionário, a pessoa de joelhos falando para uma cortina. Sabe-se lá quem estava do outro lado. Talvez prevendo reações como a minha, o padre João mudou a estratégia e resolveu confessar os neófitos na sacristia, sentado em uma cadeira, frente a frente com ele. Acho que o padre João era boa gente, porque andava com a camisa do Inter e jogava bola no campinho.

Eu entrei, sem ter ideia do que dizer. Então ele me perguntou se eu tinha algum pecado. Pensei e disse: eu brigo com o meu irmão. Só isso? Perguntou ele. Daí pensei mais um pouco: ah... e às vezes eu minto. 

Hum... Só isso? É, eu respondi. Ele ficou me olhando por um instante. 

Mas às vezes tu mente? Sim, às vezes eu minto.

Novo silêncio. Ele sem saber direito como sair da situação. Tá mentindo agora? Não, respondi.

Mas às vezes tu mente, né? (Eu comecei a me divertir de verdade). Sim, falei devagar, às vezes eu m-i-n-t-o. Ele olhou para os lados de novo. Era bonito ver como lutava. Não queria se dar por vencido. Até que não aguentou.

- Bá... então tá... reza dois pais-nossos e te arranca daqui!


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O campus no verão

Ficar trabalhando no campus da UFSM, no verão, presenteia a gente com o estranhamento. 

Há imensas ausências: das pessoas, das práticas habituais, do burburinho. Livre da normalidade que preenche tudo, o espaço se mostra, permite-se o vazio e a imensidão. Pode-se ver o silêncio.




Então, há pequenas salas, grupos de pessoas, árvores, que passavam despercebidas e cujos rumores agora vibram. 



Os prédios do campus são retos, sem graça, puro cimento e vidro. Estão dispostos em grupos, mas cada grupo longe do outro, com muito espaço entre eles. Isso faz com que eu ande por ali olhando tudo como quem está dentro de um sonho.


Sem que se faça nenhum esforço, vem até nós a percepção de estar em um mundo diferente e inquietante.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Coisas que eu queria fazer. E fiz!

Faz algum tempo, li este post em um blog que acabou. A autora abriu outro, também legal, mas eu gostava do nome daquele “Até aqui tudo bem! É a história de um homem que cai de um prédio. Enquanto cai, ele repete para se acalmar: até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem...”.

O post comenta uma lista feita pelo escritor Georges Perec, com um tema bem conhecido, as “50 coisas que eu gostaria de fazer antes de morrer.” Há coisas simples, mas há também outras improváveis e outras ainda impossíveis, lado a lado. Ir morar num hotel, ir ao Marrocos nas costas de um Camelo, conhecer Vladimir Nabokov. Leiam, vale a pena.

Com o clima de final de ano, fico sensível a tudo que diz respeito à passagem do tempo. Envelhecer não é lá uma coisa muito divertida: os cabelos caem da cabeça e nascem nas orelhas. Parece até provocação. Mas me parece melhor que a alternativa, que é a de morrer jovem.

Todavia, para que ninguém me ache muito soturno, escrevi também as minhas listas. A de coisas que eu ainda quero fazer (que não transcrevo agora). E outra, que segue, abaixo, com coisas que eu queria fazer, e fiz. Viram como não estou mal-humorado? É uma coisa boa poder elencar uns quantos sonhos realizados. Aí vão eles (naturalmente, não seguem nenhuma ordem):

- Ser professor.
- Escrever um livro.
- Viver um grande amor.
- Ser criança em uma cidade com um rio.
- Pescar um peixe grande.
- Morar em uma cidade onde eu fosse estrangeiro. E viver a rotina dessa cidade.
- Jogar uma partida de futebol com uniforme, torcida e transmissão.
- Ter um filho. E sentir que ele confia em mim.
- Morar em Porto Alegre e ir a todos os jogos do Inter no Beira-Rio.
- Saber a diferença entre normandos e saxões.
- Ver os quadros dos impressionistas.
- Há mais uma coisa, porém não declaro, porque é pornográfica. Aliás, são duas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Meu presente de Natal




Livros. Vinhos também, talvez algum CD. Mas livros. Sobretudo livros. 

Eu ia pensando nisso hoje à tarde, tentando comprar os presentes do povo aqui de casa, nesse momento agradável que é a ante-véspera de Natal, com todas os moradores desta cidade nas lojas, dando coices e cotovelaços uns nos outros, para conseguir fazer suas compras antes que chegue o fim do mundo. Juro: se eu ouvir mais uma vez a Simone cantando a música do John Lenon, eu vou apedrejar alguém. 

Foi então que entrei em uma livraria. E fiquei o restante da tarde. E todo o resto silenciou. A verdade é que não é de hoje que as livrarias me trazem um sentimento ambíguo. De um lado, uma vontade sem tamanho de ficar ali para sempre. Sozinho, com meus amigos, com todos de quem gosto. Ler um livro quieto. Olhar tantos outros. Comentar. Porém, junto vem uma angústia tremenda. De que adianta me afundar em dívidas e ceder ao consumismo, comprando muito mais livros do que posso pagar, se meu tempo é pouco? Quando é que vou ler todos esses livros? Admiro pessoas como Charlles Campos, que organizou sua vida profissional de modo a poder ler. Eu tentei fazer também, mas alguma coisa não está dando certo.

Assim, esqueçam o que eu escrevi acima. Livros são bem-vindos, claro, mas eu quero mesmo é tempo para ler. Ler com calma, pensando no que leio, fazendo relações, imaginando, criando mundos com a leitura, afinando meu olhar sobre tudo, através dessa arte. É isso. Quem me der tempo para ler, terá me feito um presente de rei.

sábado, 17 de dezembro de 2011

17 de Dezembro - Colorado das Glórias



Na tarde de 16 de dezembro de 2006 eu caminhava com a minha mulher pelas ruas do Menino Deus. Ela não tem nenhum interesse por futebol, embora seja colorada por tradição familiar e por não gostar do Paulo Santana, desde pequenininha. 

Era meu terceiro ano em Porto Alegre e assisti a quase todos os jogos do Inter no Beira-Rio, nesse espaço de tempo. O ano "Joel" em 2004. O campeonato que nos roubaram em 2005. Quase, quase. A grande Libertadores de 2006. Comentei então com a Nika, que aquela tarde deveria ser o momento mais lindo e nervoso e terrível e maravilhoso da minha vida de torcedor. No outro dia, bem cedinho, o Inter jogaria a final do Mundial de Clubes da FIFA. Nada menos do que isso.

No entanto, eu me sentia estranhamente anestesiado. Nem expectativa, nem aflição, nem gastura no estômago. O motivo: o adversário era o Barcelona. Por que justo na nossa vez? Podia ser outro time com menos credenciais! E os caras haviam triturado os mexicanos dois dias antes, como para não deixar dúvidas. Eu tentava me conformar com a ideia de uma derrota por escore baixo.

Por uma dessas estranhas simetrias, eu estava morando em Paris quando da final da Liga dos Campeões da Europa. Fui aos arredores do Stade de France no dia da final entre Barcelona e Arsenal, com meu amigo Bernardo Buarque, que estudava torcidas de futebol no doutorado (tem gente que saber viver, né?!). Vimos cenas inacreditáveis, como um torcedor do Arsenal que tentou pular a cerca, composta por algo como lanças de ferro, e ficou espetado por uma das setas. 

A noite do dia 16 foi tranquila, vi um filme e fui dormir como se nada de especial fosse acontecer no outro dia. Às 5 da manhã, o foguetório me acordou. E meu coração começou a bater no ritmo dos rojões. As horas até o início da partida foram intermináveis. Depois, quando tudo começou, cada passe do Barcelona era um tormento. O Inter ficava na defesa e conseguia conter as investidas do Barça, que dominava do jogo, mas não tinha contundência.

No intervalo, a Nika acordou e me perguntou: quanto tá? 0x0 disse, já com uma cara de louco que não conseguia mais trair para ninguém nem para mim mesmo a esperança desmedida de que a coisa poderia acontecer de que um golzinho complicava tudo de que futebol é uma caixinha de surpresas de que nada nada nada neste mundo é impossível e tantas loucuras mais quanto meu coração conseguia pensar e o jogo passando e o Fernandão machucado que merda agora é que não vamos ganhar isso nunca o Índio sangrando volta volta Índio estamos com um a menos e o Fernandão (emblema, ícone, herói) vai ter que sair mesmo mas quem é que tem estrela e talento e calma para fazer o tal gol do tesouro agora ningúem pode ter e está em campo o Gabirú mas era só o que me faltava...

...Índio - bico para a frente - Adriano Gabiru de cabeça no meio campo - Luiz Adriano de cabeça e corre na direita - Iarlei domina Iarlei acossado por dois catalães - Iarlei pra cima deles - Iarlei deixa Pujol tropeçando nas próprias pernas - Luiz Adriano pede na direita - Iarlei para Gabiru na esquerda na entrada da área - Gabiru e Valdés - a bola passando a linha - a bola batendo na rede - Inter Inter Inter...



Minutos finais mais loucos Nikelen que não gosta de futebol chorando de feliz e de nervosa dizendo é por isso que não gosto de assitir essa coisa eu caminhando de um lado para outro ajudando o Iarlei a segurar aquela bola na bandeirinha do escanteio falta que o Ronaldinho vai bater é quase pênalti minha nossa chuta passa a dois centímetros da trave... olha o contra-ataque Ronaldinho para Iniesta dentro da área CLEMER se acabou se acabou acaba juiz desgraçado vai acabar ACABOU... O INTER É CAMPEÃO DO MUNDO... 

E não lembro nada do que aconteceu nas duas semanas seguintes.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Fundamentalismo religioso e esfera pública

Já faz algum tempo que acompanho um movimento de resistência e tomada de posição dos ateus e agnósticos nas redes virtuais. De modo militante e, por vezes, provocativo, procuram contrapor-se ao que chamam de avanço de uma religiosidade fundamentalista, vinda principalmente das chamadas igrejas neo-pentecostais, mas não só delas. Uma das polêmicas recentes se deu em torno deste texto da excelente jornalista Eliane Brum.

Demorei a me manifestar sobre o tema. Em primeiro lugar, porque não acho que eu tenha que ter posição a respeito de tudo. Aliás, se tem coisa que me dá nos nervos é uma pá de gente metida a intelectual que parece considerar que é sua missão divina opinar sobre tudo e qualquer coisa na net. Além disso, como sempre, procuro evitar a tentação de simplificar demasiadamente as coisas. E, por fim, tenho por princípio o respeito a todo sentimento e filiação genuíno das pessoas, como são muitos afetos religiosos, desde que não se transformem em base para regras sociais estendidas aos não-crentes.

Há bons estudos que fazem as perguntas certas: como e por que essas Igrejas funcionam e fazem sucesso? Entre várias respostas estão, por exemplo, o senso de comunidade e ajuda mútua que proporcionam. Certa vez, um conhecido de família evangélica me contou que, quando criança, precisaram se mudar, em busca de emprego. Na nova cidade, foram acolhidos por “gente da Igreja” a que pertenciam, o que permitiu que seu pai conseguisse um emprego e uma forma de começar a nova vida. O que, naturalmente, implicaria em novos dízimos para a Igreja.

Quando escrevo “senso” de comunidade, vou além dessas efetivas prestações materiais e incluo a própria sensação de conforto emocional oferecida pela comunidade. Uma arma potente para enfrentar a insegurança aterradora da vida. Sobretudo para aqueles que têm poucos meios de sobrevivência (embora esse nem sempre seja o público dessas Igrejas). Essa segurança emocional se apresenta também no oferecimento de uma versão simples e organizada das “regras do mundo”. Preto e branco: quem as segue, vai ao paraíso (começando por uma vida melhor aqui mesmo). Quem não segue, terá danação eterna. Os males deste mundo são causados por erros em relação a essa moral, infundidas por um ser maligno. A Igreja também oferece as armas e a ajuda para lidar contra essa fonte de males.

PORÉM, compreender nada tem a ver com gostar e concordar.

Nesse ponto, estou sintonizado com a reação de gente como eu: ateus e agnósticos. Fico apavorado quando vejo as ações coordenadas da “bancada evangélica” no Congresso contra as pesquisas com células tronco, contra a reprodução assistida, contra a união legal de pessoas do mesmo sexo. Lutamos por milênios para abrandar o sofrimento de pacientes com doenças neurológicas graves. Primeiro, para saber o que eram. Depois, para tentar dar esperança de uma vida mais autônoma, mais livre, às pessoas que sofrem desses males. E são milhões de seres humanos. Lutamos para que casais que não poderiam ter filhos pelos meios “naturais” (seja lá o que essa palavra signifique), pudessem realizar um sonho gestado a dois, às vezes acalentado por anos a fio. Para que pessoas que se amam e que teceram uma vida comum possam ter o direito de gerir o que construíram em conjunto. Essas são batalhas ainda travadas na atualidade, mas onde muito campo foi ganho.

É impossível para mim falar “de fora” desse assunto. Meu pai sofreu do Mal de Parkinson por mais de 40 anos. Ver a doença avançar inapelavelmente sobre sua mente hábil e sobre seu coração generoso não permite que eu tome outra posição. Meu filho só está comigo porque pudemos contar com a reprodução assistida. Eu sei que sou melhor por causa dele. Tenho amigos homossexuais a quem amo como irmãos. Ver a luta que precisam travar todos os dias, ataca minha alma. No mundo desenhado segundo os desígneos dos deputados evangélicos, que se dizem “emissários de deus”, gente como o meu pai deve sofrer e degenerar sem nenhuma esperança através de uma morte lenta e terrível. Nesse mundo, meu filho não estaria aqui. E meus amigos deveriam sofrer quietos a absoluta repressão de sua natureza.

Para mim, não é mais possível ficar em silêncio. O Estado que constituo como cidadão deve garantir a liberdade de credo para todos aqueles que assim o desejarem. Mas deve ser vigilante e ativo para impedir que crenças particulares coloquem freios nos avanços que a humanidade vem construindo para minorar o sofrimento e a dor. Para criar esperança.

Eu lamento que os modos de conseguir segurança e ajuda, para muitos, passem pelo dogmatismo religioso. Sei também que as devoções não dogmáticas podem, inclusive, ser fenômenos belos e interessantes. Posso concordar que assim seja, desde que isso não interfira nas formas como as leis e a organização pública se estruturam. Se for dessa forma, tudo bem que se acredite em deus, em Ísis, Osíris, em Jupter, Marduk ou no Visa. Agora, uma confissão: quando penso nos pastores que nem acreditam no que pregam e lucram milhões. Bom, aí eu realmente lamento que o inferno não exista.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tudo bem

Este post do blog do meu amigo Vitor Simon, sobre a força das expressões cotidianas, me lembrou de uma que eu considero maravilhosa. Creio que é mais usada no Rio Grande do Sul, mas talvez me engane.


Dois conhecidos se encontram. Um deles inicia a conversa, como de praxe: e daí? 


O outro então discorre um rosário de desgraças: minha mãe morreu, meu pai está paralítico, minha irmã continua bebendo, meu filho perdeu no jogo tudo que eu tinha, perdi meu emprego, minha mulher me largou.

Depois uma pausa breve e infinita, o outro pergunta: "E no mais, tudo bem?"



Não é fantástico? Acabaram-se todos os tormentos, os tempos de caos, enunciados anteriormente.


O outro, vencido, nada mais pode dizer, senão a resposta esperada: "É... no mais, tudo bem."

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Menino de alma leve, voando sobre o pelego

Meu avô contava histórias. Tomando mate, na varanda em frente à casa, nas viagens para “o campo” ou enquanto assava os churrascos de domingo. Histórias de seu pai alemão e de sua mãe cabocla. De seus irmãos sem fim. De tropeadas, de amores proibidos, de guerras tenebrosas. 

Havia uma narrativa que nunca faltava. Uma epopeia no fim do mundo. Uma migração para o oeste do Paraná, em 1952. Dois meses de viagem. A floresta, onças famintas, cobras que devoravam homens inteiros. Caminhar por dois dias sem dormir, no meio do mato, para buscar um naco de carne para minha avó grávida. Depois, o fracasso da empreitada e o retorno. Ouvi essa história mil vezes, mas nunca como queixa. Sempre como aventura.

Quando menino, passava as férias na casa deles. Já adulto, gostava de ir lá tomar mate e ouvir sempre as mesmas histórias. Porque nós é que mudávamos. Então as histórias também não eram exatamente iguais.

Nas duas vezes em que a minha mãe teve filhos, passou os primeiros dias na casa do meu avô. Eu, depois meu irmão, dormíamos em um bercinho ao lado da sua cama. Quando chorávamos, era ele quem acordava e nos levava até o quarto dos meus pais, para que minha mãe, meio dormindo, nos desse de mamar.

Ele me ensinou a fazer xixi nas flores dos jardins, a dizer barbaridades para os adultos, a levar os ratos que pegava na ratoeira, pelo rabinho, e jogar nas mulheres da casa. Nunca mais me diverti tanto.

Meu avô me ensinou a montar a cavalo e a dirigir. Faço os dois mal. O primeiro por minha culpa exclusiva. Ele era um ginete. O segundo, porque o professor também não ajudava nada.

Ele amava o campo, e andar a cavalo, e camperear. Eu não era de campo. Meu irmão sim, foi o filho ue ele nunca teve. Meu avô dizia que não havia sujeito mais feliz que ele, porque amava o que fazia. De tanto ouvir isso, larguei o Direito e fui fazer História.

Pensávamos muito diferente sobre a maioria das coisas. Ele era conservador, resistia a novidades, era cabeça-dura. Mas era amoroso como ninguém. Acarinhava os netos e as filhas. Quando chegava do campo, no fim do dia, dava um jeito de dar uns amassos na minha avó, quase derrubando-a por cima da pia ou atrás das portas.

Quando o Miguel veio para casa, ele, já nonagenário, percorreu mais de 100 quilômetros para ser um dos primeiros a embalar o pequeno.



Dele herdei a boca, as feições, a forma do tórax e o costume de dormir sentado. Queria ter aprendido seu otimismo, sua gana de não se entregar nunca, sua juventude eterna. Mas a vida não é exatamente como a gente quer.

O Vô Juvenal morreu ontem, aos 92 anos. E eu sinto que acabou uma era, na minha vida.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Oito motivos para ser amigo do Milton e da Cláudia


Claro, há muitos outros motivos, mas estes são alguns:

1- São receptivos, divertidos e inteligentes. Além disso, a Cláudia é bonita e o Milton é simpático!




2- Um dia, se tiver muita sorte, você poderá ser recebido na Edícula Real, no Solar da Gaurama, com sua sugestiva cortina de banheiro.


3- Você pode queimar o forno de micro-ondas deles e nada te acontece!


4- A Juno não pega.



5- A cozinha mágica da Cláudia


6- O Milton acredita nas minhas mentiras.


7- Eles têm amigos fascinantes, que podem virar seus amigos também!


8- Na casa deles, quando menos esperar, você pode ser surpreendido pela verdadeira BELEZA.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Bem-vindo Adriano!





Seja bem-vindo, Adriano! Meu segundo sobrinho. Ô família para fazer homem essa, seu! Te desejo toda a alegria que cabe nesta vida!

Terás grandes mestres no teu primo e no teu irmão. O Ângelo poderá te ensinar como chegar nas garotas delicada mas decididamente. Quando tinha três anos, na praia, andava em volta de uma castelhaninha perguntado para ela "Oi, sou o Ângelo. O que é o seu nome?" Ou, então, escolher o método do Miguel, bem mais incisivo. Com pouco mais de um ano, ofereceu uma flor a uma menina da mesma idade. Quando viu que ela aceitou, imediatamente, agarrou e lambeu o rostinho dela. Quase apanhei do pai da guria. Enfim, são estratégias diversas que estão à tua disposição, para empregares na criação das tuas próprias.

Com teu avô, poderás aprender a assar os melhores churrascos, além da incrível arte de enfiar 842 gomos de bergamota na boca, enquanto conta uma longa história e, depois, cuspir calmamente todas as sementes. Uma por uma. São 20 anos de convivência, e ainda me impressiono. 

Tua tia vai te encher de livros e de histórias. Tua vó faz o melhor mocotó do mundo e uma torta de mandioca que vou te ensinar a pedir a ela, em vezes que eu estiver junto. 

Com teu pai, poderás aprender coisas muito úteis: desde a grande sabedoria dos computadores, da marcenaria, da engenharia até a arte de dormir sentado e com os olhos abertos, em meio a 10 pessoas que conversam animadamente. Tua mãe saberá, como ninguém, te ensinar a lidar com as crianças e com os animais, te fará os melhores pães do universo (me convide, quando isso acontecer) mas, não posso te iludir, estás arriscado a ouvir Mariah Carey de vez em quando. Te garanto: eles são pais incríveis. Eu confiaria meus filhos a eles.

Eu vou te contar piadas, te ensinar a comer pitangas e já estou escolhendo as taquaras para fazer um campinho na chácara do teu avô. Mas, já vou avisando, faça boas escolhas, porque só podem jogar colorados, como teu primo, tua prima e teu irmão. Aliás, até deixo gremista jogar, mas só no gol. E, se defender pênalti, eu anulo. Vou te ensinar a correr os patos e a fazer xixi nas flores da tua avó.

Assim é a vida, nem sempre é justa, mas é bela, é divertida e é toda tua.


sábado, 15 de outubro de 2011

Valorização dos professores: carta aberta ao governador Tarso Genro


O que vou escrever aqui não é nenhuma novidade: educação de qualidade e transformadora só se faz com professores bem pagos, com tempo para refletir, escutar, dialogar e criar. A realidade do ensino público nos níveis fundamental e médio não poderia ser mais distante dessa obviedade. Mas essa é uma daquelas tragédias que vão perdendo sua capacidade de ferir, porque nos acostumamos. Ela não incomoda mais do que um segundo e passamos adiante, como se não houvesse jeito. Ela naturalizou-se.
Desculpem-me se vão ler de novo sobre isso. Mas, se é verdade que muita gente tem dito essas palavras, é também real o fato de que nossos ouvidos perderam a sensibilidade para elas. E, se nos acostumamos, a vida dos governantes fica muito, mas muito fácil.
O que se pede são salários dignos e, sobretudo, tempo remunerado para preparação de aulas, leitura, reflexão, inventividade. Fazer com que a carreira de professor seja desejada pelos jovens. Que eles olhem para ela e pensem que, além da realização pessoal, poderão morar bem, vestir-se com decência, criar seus filhos, viajar uma vez no ano. É pedir demais para quem investe tanto tempo em sua formação e desempenha o papel de formador dos brasileiros? Sugiro uma experiência. Perguntem a qualquer professor se deseja que seu filho siga a sua profissão. Eu fiz isso: as pessoas quase caíam em prantos ante a possibilidade.
O fato é que os sucessivos governos estaduais (de diversos estados, mas aqui, me refiro, especificamente, ao Rio Grande do Sul) aproveitam muito bem a ideia de que não há como mudar verdadeiramente essa situação. Reiteram tal chavão quando estão no poder. De minha parte, me nego a acreditar nisso. Trabalho no magistério federal em nível universitário. Assim, minha condição financeira é bem menos injusta do que a dos meus colegas sobre os quais escrevo aqui.
Porém, isso tem a ver diretamente comigo sim. Trabalho em um curso de licenciatura. Eu formo professores. Alguns de meus alunos farão mestrado e doutorado, serão professores universitários. Outros irão para as escolas da rede privada que, em parte, não foge da realidade que descrevo aqui. Mas, grande parte irá trabalhar na educação básica pública. Eles formarão a maioria dos cidadãos brasileiros. Gerações inteiras, proporcionalmente os mais precarizados e os que mais precisam de atenção, estímulo, esperança e qualidade. Se eu acreditasse que não há jeito desses profissionais terem salários e condições de trabalho dignas, como querem me fazer crer TODOS os governos, então eu iria procurar outra profissão.
Não estou dizendo que se deva equiparar os salários do magistério ao dos deputados, juízes, promotores, procuradores. Isso seria imensa ousadia, não é mesmo? Poderíamos começar respeitando o piso nacional. Depois, poderíamos pensar em, digamos, R$ 3.000,00 para um iniciante com, no mínimo, 50% para atividades extra-classe. Claro, isso implica investimento. Aliás, educação não tem sido vista como investimento, mas como despesa. Educação não é algo barato. Não pode ser visto como algo que deva ser feito com poucos recursos. Se começar assim, uma política de governo só pode dar errado.
Aqui, então, devo nomear declaradamente o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Votei nele e ainda não me arrependo do meu voto. Seu titubeio em instaurar o piso salarial nacional para o magistério, que ele mesmo criou quando estava no Ministério da Educação, foi assustador. Tornou-o igual à sua antecessora, de quem me eximo de escrever o nome em respeito a meus leitores. Agora, o governador Tarso Genro parece inclinado a pagar o piso, em ano vindouro. Contudo, quando se esperava algo realmente novo, suas modificações na educação estão relacionadas a uma avaliação dos professores.
Que justiça há em avaliar pelo mérito e pelo desejo de aperfeiçoar-se, professores que trabalham 60 horas em três escolas diferentes, interagindo com centenas de alunos que eles têm a obrigação de aprovar no final do ano sem nem ter certeza de cumprirem os requisitos básicos? Vão cobrar que busque se aperfeiçoar, saiba lidar com o mundo virtual, inove, seja criativo, prospectivo e quantas mais palavras a mentalidade empreendedora inventar para transferir para os trabalhadores da educação uma responsabilidade que, só em parte, é deles.
Avaliação é algo necessário, deve ser implantada com rigor, depois de amplo e eficaz diálogo com a comunidade de professores e com a sociedade. Porém, avaliação, tecnologia, gestão, qualquer coisa vem DEPOIS da concreta valorização do magistério. Só isso não basta, é certo. Depois, avaliações pertinentes devem trabalhar, junto com outras ações, para inibir e corrigir aqueles professores que não fizerem jus a seus salários. Mas a base de tudo está em professores bem pagos, Minha nossa, quantas vezes se tem que repetir essa obviedade?
Um governo que se diz democrático e popular deve tomar como prioridade a instalação da valorização do magistério. Mas o governador Tarso Genro parece inclinado a fazer o mínimo. Parece que sua ideia é poder brandir, ao final de seu mandato “fizemos mais do que a nossa antecessora”. Governador Tarso, me escute: se Vossa Excelência ficar quietinho sentado na sua cadeira, já terá feito mais que sua antecessora que, além de aviltar como muitos o magistério, ainda desaforou e foi mal educada, grosseira e patética no trato com os professores. O partido dela foi uma forças mais nocivas contra o ensino público também quando ocupou o governo federal. Isso todos nós sabemos. Mas eu pergunto: é só isso que o senhor quer? Essa é a ideia que tem de si mesmo como político? O senhor será um governador desse tamanhinho, só? Ajude-me a não acreditar nisso.
Com todo respeito, eu digo que a sua OBRIGAÇÃO, para honrar a trajetória de lutas que seu partido desenhou nas décadas de 1980 e 1990 é a de promover a valorização do magistério e, a partir daí, desencadear mudanças radicais na educação. Com que recursos, poderão perguntar. Mas eu sei, e sei que Vossa Excelência também sabe, que esses recursos cabe ao senhor e sua equipe terem criatividade para gerar. Tirem de algum lugar, encontrem, captem, sejam inventivos, ora. Estejam à altura de seus cargos e da confiança de milhões de gaúchos. Esteja o senhor à altura de seu próprio projeto como estadista. Não se contente em ser melhor que sua antecessora. Qualquer um seria.
Escrevo tudo isso sem esperança de que gere verdadeiro efeito no poder ou no que quer que seja. No fundo, penso que talvez a única força que pode propulsar tamanha modificação nas mentes e no peito da sociedade e dos governantes, é uma retumbante ação de protesto por parte do magistério. Algo realmente grande e forte e pacífico e firme até o fim. Sem aceitar nada menos do que a concreta valorização. Mas será que ainda podemos exigir mais isso dos professores, que já fazem tanto, com tão pouco?
Ainda assim, minha impressão é a de que, sem mobilização da categoria e da sociedade, o governo seguirá na cômoda posição de dar um pequeno aumento percentual e vangloriar-se de estar fazendo grande coisa.
Será que posso ter esperanças de estar enganado?

domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos Pais

O Miguel acordou às oito, pedindo o mamá. Chovia estrondosamente. Foi demorado fazer sozinho todos os procedimentos de um despertar e preparar para viagem. Coisas que, normalmente, fazemos em dois, mas hoje a mãe dele está em São Paulo, lançando um livro em que é co-autora. Enrolei-me um tanto, ainda mais eu, que costumo ter dificuldade mesmo de arrumar somente a mim.

Miguel adora viajar. Foi cantando no carro, até adormecer. Fomos ver minha mãe e meus avós e visitar a memória do meu pai, na cidade que ele adorava e onde pediu para ser enterrado. Quando chegamos à ponte da entrada, vi que o rio estava caudaloso e barrento, como fica nos invernos de muita chuva. Diferente dos tempos secos de verão, quando ele é manso e limpo. Até hoje, lembro do cheiro do rio quando eu era guri. E do tato da água na pele. E lembro das margens onde corre uma estrada fechada por árvores. Nessa estrada, meu pai e eu caminhávamos nos domingos pela manhã, para ir pescar.

Meu pai era inteligente e irônico. Às vezes, era debochado mesmo. Certa ocasião, numa reunião de pais e mestres, na escola onde era professor, ouviu uma senhora doutrinar: “O problema dos jovens, em seus namoros, é que só querem saber da hora da cama! E a cama não é o mais importante em um relacionamento.” Ao que meu pai pediu a palavra e disse: “Apoiada! Concordo inteiramente!” Ela, cheia de autoridade: “Viram, o Luís Antônio também acha que o sexo não é o mais importante em um relacionamento!” e meu pai: “Espera, Fulana, tu disseste a cama. Daí eu concordo, a cama não é o mais importante!”

Conforme a doença avançou e foi lhe tirando os movimentos e, muito depois, a autonomia e a consciência íntegra, lembro dele ir misturando o humor com uma funda melancolia. E também foi desgostando do futebol. Ele que, na minha infância, vivia verdadeiramente os campeonatos. Lembro que, em 79, houve uma semifinal, Inter x Palmeiras. Lembro de um gol do Falcão, colocando o pé na sola do palmeirense Mococa. Lembro de meu pai me rodar no ar. Eu, com seis anos, achei que estava voando.

Hoje, quando a chuva deu uma trégua, aproveitando o pátio e a casa grande, o Miguel correu sem parar, gritando inteiro, feliz que só ele. Pisoteou o gramado, derrubou umas quantas flores e aterrorizou cães, gatos e galinhas. Encheu os olhos do meu avô quase centenário. Foi então que eu pensei no meu pai. E imaginei que, algum dia, eu devo ter corrido, daquele mesmo jeito, naquele mesmo quintal. E que, talvez, ele tenha me visto como hoje eu vi o Miguel. E que, provavelmente, sentiu o que eu senti. E a minha saudade ficou sem fim.



O mencionado gol do Falcão está entre 0:57 e 1:05 min do vídeo

sábado, 6 de agosto de 2011

Dia de Festa

Acontece que eu moro em uma rua calma, coberta de paralelepípedos, onde os únicos edifícios são o meu e o que fica logo em frente. Em todo o restante da longa ladeira que ela forma, há casas antigas, a maioria delas habitadas por casais de idosos, descendentes de italianos. Coisa típica deste bairro. Escuto galos cantarem às 5 da manhã, há latido de cães a noite inteira e um vizinho estúpido queima lixo no quintal. Lembra minha infância em Jaguari. Nos domingos pela manhã, meus vizinhos sobem a rampa bem cedo para ir à missa. Eles conversam entre si e nos olham como forasteiros. Morando aqui há quatro anos, já identifico muitos deles. Lembro que, no verão passado, fazia um calor desumano, quando se aproximou uma tempestade. Eu feliz da vida, porque iria chover e aliviar aquele calor danado. Então, vi um deles envergar um cartão com a imagem de uma santa e fazer movimentos com os braços em direção ao temporal, murmurando uma oração ou encantamento ou feitiço. E não é que as nuvens passaram reto e não choveu! Filho da mãe!

Nesta rua, há uma casa cor-de-rosa com as janelas vermelhas, onde mora um casal bem velhinho. Volta e meia chegam três, cinco, sete carros. Desce gente de todas as idades, muitas delas com bebidas e pratos nas mãos, e se vão aos fundos da casa. E há música e dança até a madrugada. No Natal, no Ano Novo, até no carnaval. Porém, no ano passado, por mais de uma vez acompanhei uma ambulância chegar até a casa. Depois de um tempo, vi que o ancião que morava ali começara a sair em uma cadeira de rodas, para tomar sol. Fazia meses que não o via. Hoje, notei que a frente da casa estava ornamentada com balões coloridos. Então, vi o velhinho apoiado em duas bengalas, muito frágil, comandando os lugares para onde iriam as bebidas que iam chegando.

Não consigo descrever a minha alegria.


segunda-feira, 4 de julho de 2011

Amigos Perdidos - I

Onde está Vitor Simon?
Hoje fui levado por um vagalhão daquilo que o Quintana chamara de "marés montantes do passado". Cometi a imprudência de abrir uma pasta que eu mesmo havia etiquetado, sei lá quando, com a palavra "memória". Fui abrindo papéis com textos e textos e textos. A maioria meus. Da adolescência ou pouco depois. Uma pá de coisa para me envergonhar. Outras mais a estranhar. Escritas por um sujeito que pouco reconheço. O que já era de se esperar, afinal, quase uma vida passou.
Mas, no meio das minhas coisas, lá estavam algumas páginas esporádicas com outra letra. Eram contos e poemas do meu amigo Vitor Simon. Queríamos ser escritores. Trocávamos esses papeluchos eventualmente, para apreciação crítica ou simplesmente para nos comunicarmos.
Eu tinha amigos mais próximos. Eu era um sujeito espalhado. Ele também tinha muitos outros amigos, mesmo sendo bem alemão. Mas, lendo os textos, percebi que gostava muito das nossas conversas. Ganhei dele as Iluminuras, do Rimbaud. "Para ler entre um aniversário e outro", está no cartão.
Do nada, me veio a perfeita percepção de que gostaria de tomar uma cerveja e ter longa conversa com o Vitor. Saber se ainda escreve. Trabalha no que? Se tem filhos, se vive com quem ama. Que coisas andou vendo nesse tempo todo. Meu bom-senso imediatamente me lembrou que amigos assim, afastados há década e meia, melhor é que não se encontrem. Sempre são melhores na memória. Já tive uma experiência triste que deveria ter me vacinado definitivamente contra isso.
Mas, sabe como é, uma das minhas características mais notáveis é que, vez por outra, costumo meter os pés pelas mãos. 
Então escrevo este post, como uma garrafa ao mar.
E sou tão desajuizado, que talvez transforme isso numa série.
Eu sou um desastre.