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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Photographias


As fotografias produzidas no século XIX me causam maravilha.

Eu estudo aquela gente. Aqueles lugares.

É conhecida e mil vezes repetida a sentença, devida a Marc Bloch, de que os historiadores devem ser como o ogro do imaginário medieval. Devem farejar a carne humana e andar onde ela estiver. Pessoas, é disso que trata a História. Está aí uma daquelas ideias tão simples e tão adequadas, que se deveria ter na frente da mesa de trabalho, colado no mural, tatuado no braço. Eu sei bem disso, não pensem que não.

Porém, apesar desse impulso e desse esforço consciente por reconstruir humanidades, basta olhar uma dessas fotos e fica clara a impressão de que a torrente de modelos analíticos, ideias, relações, escolhas narrativas, tudo isso acaba proporcionando, no máximo, imagens muito esquemáticas daquela gente.

Essa percepção me esbofeteia a cara quando olho para as figuras, os olhares, o corpo das pessoas naquelas fotos.

Olhem para esses dois sujeitos, no fundo desses retratos esmaecidos, encontrados junto a um processo criminal do final do século XIX. Eles foram acusados de um homicídio na fronteira do Brasil com a Argentina, em 1884.

Seraphim Cesário e Silva, 30 anos, solteiro, natural de Alegrete. No interrogatório, disse ser pedreiro, porém vivia de trabalhos eventuais.



Miguel Verdum, 21 anos, natural do Uruguai e também vivia de trabalhos não especializados.



Eu sei, os retratos são, eles também, muito artificiais. E se poderia dizer mil palavras analisando suas roupas, sua postura, os grilhões que lhes prendem os pés. Não farei isso aqui. Uma análise dessas imagens e da gente que transitava naquela fronteira, vocês encontram na tese de doutorado de Mariana Thompson Flores, que me cedeu gentilmente essas fotos e de cuja obra tirei a ideia para este post. Como apontou Mariana, "suas imagens, sentados com os pés presos por grilhões, devem representar que aspecto deviam ter esses inúmeros indivíduos que transitavam entre fronteiras geográficas e viviam entre o lícito e o ilícito." 

Aqui, porém, eu queria apenas declarar esse fascínio que me é inevitável. Creio que seja diferente para historiadores que estudam o século XX, familiarizados com os sujeitos e a época que estudam através de  um sem número de fotografias. Já, para os estudiosos do século XVIII ou épocas anteriores, essa percepção através da foto é impossível. Assim, só os historiadores que dedicam seu trabalho ao Oitocentos  talvez possam me entender. As fotografias existem. Mas elas trazem junto uma sensação que tem o poder de desnaturalizar.

Trata-se da experiência de render-se à imagem como um instrumento de comunicação com um outro mundo. 

E eu me assombro.



Parte desse post foi inspirado em comentário feito ao excelente post do Charlles Campos sobre as fotografias de Eugène Atget

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No Museu D'Orsay

Eu sempre gostei da pintura europeia produzida da segunda metade do século XIX até o Entre-guerras. Desde quando eu nem sabia que era disso que se tratava. Só via os quadros, as cores, a luz e ficava olhando longe. Assim, estar por quatro meses em Paris, em 2006 e não ir ao Museu D’Orsay, onde há enorme coleção de arte impressionista, era algo fora de cogitação. Mas confesso que não foi fácil. O lugar é muito disputado. Na primeira vez em que tentamos, ficamos mais de hora na fila, com chuva e frio, até que desistimos. Na segunda vez, fomos muito intencionados. Aguentamos duas horas e meia e entramos lá. E tudo valeu.
O Orsay é uma antiga estação de trens cuja arquitetura preservada combina perfeitamente com os quadros pintados naquele fin-de-siècle.


Fica à beira do Sena e, se nem houvesse qualquer coisa dentro, já valeria uma visita.

Não se pode fotografar as pinturas, mas o resto pode.

O texto abaixo foi o que escrevi assim que saí de lá. Na época, enviei para alguns amigos. Como vocês poderão ver, pela dicção do texto, o Orsay me lançou um feitço e eu me criancei por vários dias (mas, como vêem pela foto, não era só eu: é comum ver essas turmas inteiras de crianças, fascinadas, a contemplar e perguntar tudo aos professores).

Paris, 13 de maio de 2006
Fomos lá no Orsay e adoramos bastante. Verdade que tinha um punhado de gente atrapalhando de ver os quadros: uns italianos gritando e esparramando as mãos pra tudo quanto é lado; umas alemoas grandonas, maiores que os homens que vão com elas (dizem que são as tais de norvegianas); uns miles de japoneses: tudo correndo de cá pra lá e batendo foto. Dá vontade de botar todos pra fora... Mas deixemos pra lá, que sou um sujeito de raivas muito passageiras.
Tem os quadros!!!! Os do Manet olham pra gente de um jeito tão intenso que encabula. O menino com o pífaro é de ficar horas. Ele toca a flauta e olha pra gente ao mesmo tempo. É uma inquietação. Da mesma forma que todas as pessoas bem brancas contra os fundos escuros que ele gostava tanto. Até umas jovens nuas. Olhando pra gente. Sempre.

Depois, eu entrando numa sala grande, alta e, da porta, vi que lá na outra parede amanhecia. E, ao lado, fazia tarde a pino. Logo adiante, estavam recolhendo os bichos porque estava anoitecendo. Era tudo Pissaro, que eu passei a amar desde já.

Indo adiante, tinha um quadro do Claude Monet no qual recém tinham tomado café e as coisas ainda estavam sobre a mesa, no jardim, as cadeiras vazias levemente afastadas. Em volta da mesa, fazia uma manhã tão morna e o dia prometia ficar tão lindo, que eu quis entrar pra dentro e mandar os Monet tudo embora. Toca daqui porque quem vai morar nessa casa agora sou eu. Tô cobiçando sim! Quem mandou gavar? É pra já que eu trago minha linda, espalho meus livros, boto rádio pra ouvir jogo do Colorado e nunca ninguém vai dizer que isso aqui não sempre foi meu.
Isso sem falar da ponte verde onde um dia eu ainda vou passar lá e respirar bem fundo...
Quando fui ver o Van Gogh tinha tanta gente na frente que eu quis dar uns cotovelaços, mas a Nika não deixou. No entanto, mesmo com aquele barulho todo, os camponeses tiravam uma sesta no amarelo. Campo de feno. Logo, ia chover. E nos outros quadros todas as cores e formas eram muito apropriadas para sonho. Inclusive o azul.

Eu sempre gostei do Degas. Porém, agora gosto mesmo. Pois, como vocês sabem, eu aprecio de coração e de melancolia os quadros do Hopper. Vocês me acreditam que eu estava passando os olhos numa parede e havia um quadro do Degas que tinha o Hopper todo nele?! Foi daquela matéria ali que o Hopper puxou, puxou, esticou, arrumou, botou uns silêncios e criou sua própria obra. Mas ele tem que dar federação ao Degas. Nessas coisas das solidões, o Degas exerce PRIMAZIA.

Mas de tudo, tudo, tudo que eu vi naquele dia; e aí vou incluindo o Sena com a Rive Droite encostada nele; e boto também as moças do Gauguin acarinhadas numa cor de manga madura que eu conheço e amo desde menino; pois de tudo isso, o que me tirou mesmo de mim, e me estendeu pra muito maior do que eu sou, foi mesmo uma pintura do Lautrec. Porque ele, que tudo caricaturava com amargor, pintou uma cena eterna. O quadro se chama

“Dans le lit”

estava em uma sala escura e eu nunca tinha visto... Não tem como descrever. E nem vou tentar. Nem procurem na internet, porque a visão dele aqui, em uma tela de computador, não tem condão. Nem é o mesmo quadro que vendo lá. Um dia vocês vão lá e vejam. E façam dele algo seu. E até posso apostar que ele continuará com vocês, da mesma foram que ele está trespassado em mim, desde então.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Salário digno aos professores - governos não têm desculpa

Excelente matéria de Felipe Prestes no Sul21 vai aos dados e mostra que o setor da educação tem 60% do funcionalismo, mas consome apenas 30% da folha de pagamento do estado do RS. Os dados são do DIEESE. Ao lerem a matéria, notem a enorme fatia ocupada pelo Poder Executivo nos gastos com a folha de pagamento. A desigualdade não era tão grande no governo Olívio Dutra (PT) e vem piorando nos governos de Germano Rigotto (PMDB) e da governadora que lhe sucedeu (PSDB). O governo Tarso Genro (PT) usou, novamente, a cantilena de que não se pode dar dignidade salarial aos professores em razão da folha de pagamento. Nunca convenceu. Agora, se pode ver o porquê.

Assim, os argumentos que tentam naturalizar a injustiça trágica do salário do magistério estadual não se sustentam. Argumento falso, como se vê na matéria. O que falta, sim, é VONTADE POLÍTICA. E isso se resolve na seara da política: protesto, negociação, pressão. Se pagarem os professores com justiça, o estado não vai falir, não virá o apocalipse, só o que acontecerá é que a educação de nossas crianças e jovens vai melhorar de qualidade. Mas será preciso fazer ajustes, sim. E, para variar, seria interessante que os governos ousassem, fizessem algo novo e não sangrassem a carne do magistério, já tão repetidamente violentada.

LEIA A MATÉRIA COMPLETA, aqui

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

A agressão aos moradores do Pinheirinho: algumas perplexidades

Sou um sujeito lento. Não consigo acompanhar tudo que se tem produzido na mídia, especialmente a eletrônica, sobre tudo quanto acontece a todo tempo no mundo inteiro. Tanta informação é coisa de enlouquecer. Muito já foi dito, instantaneamente, sobre a violência sofrida pelos moradores do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Entre tantas, recomento este editorial do Sul21. O que registro aqui são apenas algumas de minhas perplexidades com o caso.


http://maierovitch.blog.terra.com.br/2012/01/23/pinheirinho-e-o-uso-precipitado-da-forca-publica/

Eram milhares de mulheres, homens, velhos quebrados de uma vida de serviço, trabalhadores, migrantes fugidos da seca e da fome no nordeste, pobres, crianças de colo, crianças. Crianças. Crianças. Crianças. Ocupavam ilegalmente uma área que pertencia à massa falida de um especulador criminoso. Foram expulsos de suas casas pela polícia, por ordem da justiça. Velhos. Crianças. Famílias. Crianças. 

Crianças.

Crianças.

Crianças.

Uma solução política poderia ter sido feita. Deveria ter sido. Os políticos são pagos pelo dinheiro de quem paga impostos. Estes são gerados pelo trabalho daquela gente. A polícia também. E o juízes. Uma solução política. Sim, sim, já se tentava há muito tempo. Era preciso tentar mais. É para isso que se paga políticos. E a formação de juízes e delegados. É para isso que se paga cursos de Direito.

As cidades brasileiras estão se transformando em monstros inviáveis. Impensáveis. Em quimeras urbanas. Mas não há o que se fazer senão lutar contra o monstro. 

Famílias inteiras, suas casas derrubadas. Anos de trabalho. Juntar salário, comprar material, fazer a casa. Morar lá, com a sua família.

As versões da mídia televisiva foram, em maioria, fantasiosas. Narraram o que não houve. Omitiram. Misturaram. Estudaram como fazer para melhor confundir.

Que direito de propriedade é esse que promove tanta barbárie? Que arranca a casa de velhos, de crianças? 

Crianças.

A ação tinha base legal. É verdade. Quando se destrói a casa de moradia de milhares de famílias pobres para defender o direito absoluto de propriedade de um especulador, não são os ocupantes que estão errados. É a lei. 

E o sistema que gera a lei.



quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tlön e a História


Ando com a impressão de que a História é um gênero da literatura fantástica. Talvez um gênero bem complicado, porque lida com a verdade.

Vejam só este excerto de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges:
 
Ahora tenia en las manos un vasto fragmento metódico de la historia total de un planeta desconocido, con sus arquitecturas y sus barajas, con el pavor de sus mitologías y el rumor de sus lenguas, con sus emperadores y sus mares, con sus minerales y sus pájaros y sus peces, con su álgebra y su fuego, con su controversia teológica y metafísica.” (Ed. Emecé, p. 23)

Não é exatamente isso o que fazemos?

Na página seguinte, alguém sugere que desistam de procurar os outros volumes da história e do mundo de Tlön, e sim que os escrevam. Calcula-se que uma geração de tlönistas deve bastar.

Parece-me bem semelhante às constelações de historiadores cartografando mundos desconhecidos.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Em silêncio

Era o final do meu terceiro dia em Montevideo. Depois de uma tarde abrasadora, passada metade em livrarias e metade em um simpósio, eu e uns colegas nos preparamos para percorrer a Avenida 18 de Julio, rumo à Ciudad Vieja. Nosso destino: a confraternização final do congresso. Nada mais prosaico, para quem costuma ir a esses eventos.

Acontece que, pela avenida, ia a manifestação do dia internacional de combate à violência contra a mulher.
Como se pode supor, houve atos no mundo todo. Ali, porém, a coisa parecia diferente. Talvez porque estivesse passando ao meu lado. Bem mais de mil pessoas, talvez o dobro, vestidas de negro. Em silêncio.

À frente, mulheres carregavam velas e cruzes púrpuras onde estavam escritos os nomes de suas mães, suas filhas, suas irmãs, suas amigas que haviam morrido vítimas da violência dos homens. Naquela que é uma das avenidas mais movimentadas da capital, ouvia-se apenas o som de milhares de passos.



Eu olhava aparvalhado quando meus colegas me chamaram para dentro. Já iam com a multidão. E me deixei ir. Fui olhando o rosto das pessoas, casais, velhos, crianças. Chegamos à praça. Fez-se um ato silencioso. Um silêncio de milhares.

Uma coisa é estar em um país estrangeiro e meter-se em algo assim pela atração do exótico. Quase como um programa turístico para quem não quer se parecer com o turista convencional. Comigo não foi assim. Foi espontâneo e surpreendente. Me vi no meio daquela gente, lendo os nomes das mulheres nas cruzes. Relendo. Mirando os olhos das mulheres que as carregavam.


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Cidades invisíveis, mundos infinitos - pensando sobre Calvino, Pólo e o Kahn

Este post do Milton Ribeiro, bem como os comentários ali realizados, me fizeram voltar a Calvino e Borges. 

Amo “As cidades invisíveis”, de Calvino. É uma das minhas 10 obras preferidas (que, na realidade, devem somar mais de 50, entre elas Ficções, do Borges). Parte do texto abaixo, é transcrição do meu comentário lá no post.

Uma das coisas que mais gosto no livro de Calvino é o fato de que Kublai Kahn conquistou/herdou o maior de todos os impérios, mas está condenado a jamais conhecer muitos de seus territórios. Ele é um imperador incompleto. Quem olhar para ele, poderá ver vazios pungentes aqui e ali em seu corpo imperial. O Império é grande demais para os limites dos deslocamentos a cavalo, em camelo, nos barcos a vela e remo. O Império é grande demais para uma única vida. Assim, para conhecer o seu próprio Império e, de alguma forma, conhecer a si mesmo, o Imperador precisa dos outros, das narrativas que lhes fazem.

Então, ele faz uso de emissários, encarregados de viajar pelos confins e dar-lhes a conhecer através de seus relatos. Dentre eles, Marco Pólo é o mais amado, não porque viaje mais rápido ou percorra maiores distâncias, mas por sua arte de narrar. É através da palavra de Pólo que se presentificam as cidades para Kublai Kahn. Através, portanto, de um jogo inter-subjetivo que articula três pontas: o próprio Imperador, o narrador-viajante e as cidades, que nunca se saberá se existem mesmo ou se têm aquela forma. Mas não importa, porque a narrativa é o modo delas existirem para a experiência do grande Kahn. Pólo é o mago que restitui a inteireza ao imperador despedaçado.

Mas ninguém se engane com essa minha conversa sobre limites e inteireza. Outra característica do império do Kahn, e também das narrativas de Pólo, é que não se pode demarcar com certeza as suas fronteiras. Nas suas fronteiras não há muralhas. Há sim imensos espaços vazios, outros que são estradas, rios, oásis onde se misturam povos vizinhos e os habitantes do Império. Por ali vão e vêm o vento, os mercadores, os fugitivos, os viajantes.

O fato de ser impossível conhecê-lo de todo facilita-lhe a qualidade de infinito, de algo que pode ser continuamente reconstruído.

(ao que parece, a imagem que usei é o Mapa Mundi, de Fra Mauro, do século XV, talvez inspirado nas narrativas de Pólo. Busquei neste site aqui)

sábado, 15 de outubro de 2011

Valorização dos professores: carta aberta ao governador Tarso Genro


O que vou escrever aqui não é nenhuma novidade: educação de qualidade e transformadora só se faz com professores bem pagos, com tempo para refletir, escutar, dialogar e criar. A realidade do ensino público nos níveis fundamental e médio não poderia ser mais distante dessa obviedade. Mas essa é uma daquelas tragédias que vão perdendo sua capacidade de ferir, porque nos acostumamos. Ela não incomoda mais do que um segundo e passamos adiante, como se não houvesse jeito. Ela naturalizou-se.
Desculpem-me se vão ler de novo sobre isso. Mas, se é verdade que muita gente tem dito essas palavras, é também real o fato de que nossos ouvidos perderam a sensibilidade para elas. E, se nos acostumamos, a vida dos governantes fica muito, mas muito fácil.
O que se pede são salários dignos e, sobretudo, tempo remunerado para preparação de aulas, leitura, reflexão, inventividade. Fazer com que a carreira de professor seja desejada pelos jovens. Que eles olhem para ela e pensem que, além da realização pessoal, poderão morar bem, vestir-se com decência, criar seus filhos, viajar uma vez no ano. É pedir demais para quem investe tanto tempo em sua formação e desempenha o papel de formador dos brasileiros? Sugiro uma experiência. Perguntem a qualquer professor se deseja que seu filho siga a sua profissão. Eu fiz isso: as pessoas quase caíam em prantos ante a possibilidade.
O fato é que os sucessivos governos estaduais (de diversos estados, mas aqui, me refiro, especificamente, ao Rio Grande do Sul) aproveitam muito bem a ideia de que não há como mudar verdadeiramente essa situação. Reiteram tal chavão quando estão no poder. De minha parte, me nego a acreditar nisso. Trabalho no magistério federal em nível universitário. Assim, minha condição financeira é bem menos injusta do que a dos meus colegas sobre os quais escrevo aqui.
Porém, isso tem a ver diretamente comigo sim. Trabalho em um curso de licenciatura. Eu formo professores. Alguns de meus alunos farão mestrado e doutorado, serão professores universitários. Outros irão para as escolas da rede privada que, em parte, não foge da realidade que descrevo aqui. Mas, grande parte irá trabalhar na educação básica pública. Eles formarão a maioria dos cidadãos brasileiros. Gerações inteiras, proporcionalmente os mais precarizados e os que mais precisam de atenção, estímulo, esperança e qualidade. Se eu acreditasse que não há jeito desses profissionais terem salários e condições de trabalho dignas, como querem me fazer crer TODOS os governos, então eu iria procurar outra profissão.
Não estou dizendo que se deva equiparar os salários do magistério ao dos deputados, juízes, promotores, procuradores. Isso seria imensa ousadia, não é mesmo? Poderíamos começar respeitando o piso nacional. Depois, poderíamos pensar em, digamos, R$ 3.000,00 para um iniciante com, no mínimo, 50% para atividades extra-classe. Claro, isso implica investimento. Aliás, educação não tem sido vista como investimento, mas como despesa. Educação não é algo barato. Não pode ser visto como algo que deva ser feito com poucos recursos. Se começar assim, uma política de governo só pode dar errado.
Aqui, então, devo nomear declaradamente o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Votei nele e ainda não me arrependo do meu voto. Seu titubeio em instaurar o piso salarial nacional para o magistério, que ele mesmo criou quando estava no Ministério da Educação, foi assustador. Tornou-o igual à sua antecessora, de quem me eximo de escrever o nome em respeito a meus leitores. Agora, o governador Tarso Genro parece inclinado a pagar o piso, em ano vindouro. Contudo, quando se esperava algo realmente novo, suas modificações na educação estão relacionadas a uma avaliação dos professores.
Que justiça há em avaliar pelo mérito e pelo desejo de aperfeiçoar-se, professores que trabalham 60 horas em três escolas diferentes, interagindo com centenas de alunos que eles têm a obrigação de aprovar no final do ano sem nem ter certeza de cumprirem os requisitos básicos? Vão cobrar que busque se aperfeiçoar, saiba lidar com o mundo virtual, inove, seja criativo, prospectivo e quantas mais palavras a mentalidade empreendedora inventar para transferir para os trabalhadores da educação uma responsabilidade que, só em parte, é deles.
Avaliação é algo necessário, deve ser implantada com rigor, depois de amplo e eficaz diálogo com a comunidade de professores e com a sociedade. Porém, avaliação, tecnologia, gestão, qualquer coisa vem DEPOIS da concreta valorização do magistério. Só isso não basta, é certo. Depois, avaliações pertinentes devem trabalhar, junto com outras ações, para inibir e corrigir aqueles professores que não fizerem jus a seus salários. Mas a base de tudo está em professores bem pagos, Minha nossa, quantas vezes se tem que repetir essa obviedade?
Um governo que se diz democrático e popular deve tomar como prioridade a instalação da valorização do magistério. Mas o governador Tarso Genro parece inclinado a fazer o mínimo. Parece que sua ideia é poder brandir, ao final de seu mandato “fizemos mais do que a nossa antecessora”. Governador Tarso, me escute: se Vossa Excelência ficar quietinho sentado na sua cadeira, já terá feito mais que sua antecessora que, além de aviltar como muitos o magistério, ainda desaforou e foi mal educada, grosseira e patética no trato com os professores. O partido dela foi uma forças mais nocivas contra o ensino público também quando ocupou o governo federal. Isso todos nós sabemos. Mas eu pergunto: é só isso que o senhor quer? Essa é a ideia que tem de si mesmo como político? O senhor será um governador desse tamanhinho, só? Ajude-me a não acreditar nisso.
Com todo respeito, eu digo que a sua OBRIGAÇÃO, para honrar a trajetória de lutas que seu partido desenhou nas décadas de 1980 e 1990 é a de promover a valorização do magistério e, a partir daí, desencadear mudanças radicais na educação. Com que recursos, poderão perguntar. Mas eu sei, e sei que Vossa Excelência também sabe, que esses recursos cabe ao senhor e sua equipe terem criatividade para gerar. Tirem de algum lugar, encontrem, captem, sejam inventivos, ora. Estejam à altura de seus cargos e da confiança de milhões de gaúchos. Esteja o senhor à altura de seu próprio projeto como estadista. Não se contente em ser melhor que sua antecessora. Qualquer um seria.
Escrevo tudo isso sem esperança de que gere verdadeiro efeito no poder ou no que quer que seja. No fundo, penso que talvez a única força que pode propulsar tamanha modificação nas mentes e no peito da sociedade e dos governantes, é uma retumbante ação de protesto por parte do magistério. Algo realmente grande e forte e pacífico e firme até o fim. Sem aceitar nada menos do que a concreta valorização. Mas será que ainda podemos exigir mais isso dos professores, que já fazem tanto, com tão pouco?
Ainda assim, minha impressão é a de que, sem mobilização da categoria e da sociedade, o governo seguirá na cômoda posição de dar um pequeno aumento percentual e vangloriar-se de estar fazendo grande coisa.
Será que posso ter esperanças de estar enganado?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Era da Incerteza: de que lado estamos

Em seu Tempos Líquidos (um livrinho bem maior por dentro do que por fora), o sociólogo polonês Zygmunt Baumann faz uma condensação de muitas das idéias que expôs em obras anteriores. Creio não ser errado dizer que o livro é uma síntese delas. Confesso que meu gosto pelo livro foi aumentando conforme o lia e chegou ao ápice no último capítulo. Ali, o velho pensador faz uma avaliação quase poética sobre a utopia.

Zygmunt Baumann

A visão medieval e tradicional do homem como um guarda-caça, que deve zelar pelo mundo deixando-o como Deus criou, teria sido sucedida, no período moderno, pela utopia do jardineiro. Os homens acreditaram poder substituir um suposto criador e, eles mesmos, recriarem o mundo. Não mais a natureza com sua ferocidade e imperfeição, não mais a floresta, mas sim o jardim planejado, simétrico, inequívoco. Fruto da arte do homem. Hoje, temos a ruína da utopia do jardineiro, gerada, entre outros motivos, pela frustração derivada do fato dela não ter trazido a perfeição que prometia. E, também, do perigo autoritário devido à essa busca de perfeição. Porém, não se colocou algo necessariamente melhor no lugar.

O que Baumann identifica como hegemônico, na virada do século XX para o XXI, é o procedimento que pode ser descrito pela metáfora do caçador. “A única tarefa que os caçadores buscam é outra ‘matança’, suficientemente grande para encherem totalmente suas bolsas. Com toda certeza, eles não consideram seu dever assegurar que o suprimento de animais que habitam a floresta seja recomposto depois (e apesar) de sua caçada.” (...) “Agora somos todos caçadores, ou chamados de caçadores e compelidos a agir como tal, sob pena de sermos expulsos da caçada, ou (nem pensar nisso) relegados às fileiras da caça. E o quanto quer que olhemos em volta, provavelmente veremos outros caçadores solitários como nós, ou caçadores caçando em grupos da maneira como nós mesmos também tentamos.”

A reflexão de Baumann se encaminha para reafirmar algo que é recorrente em sua obra. O diagnóstico de que, cada vez mais, temos dificuldades de nos pensarmos como coletividade. Todos exigem de nós que demos soluções individuais para problemas gerados coletivamente, e nosso valor é medido por nosso sucesso em dar essas soluções. Acontece que, pelo próprio teor do sistema, só uma minoria pode dar essas respostas.

Baumann é um sociólogo com muita proximidade à filosofia, como ele mesmo já afirmou. Recentemente, um texto infeliz de uma fonte de onde somente se pode esperar coisas como esta, duvidava da importância de se estudar sociologia e filosofia no ensino médio (imagino que o raciocínio também se estenda à história, geografia e literatura). O articulista dizia que precisamos de mais engenheiros e menos estudiosos de ciências sociais e humanidades. Veja-se que, quem estuda humanidades, periga acabar analisando o mundo como Baumann. E talvez espalhem essas idéias. E se juntem nas esquinas aos protestos que espalham pelo mundo real e virtual. Onde vai dar isso tudo, ninguém sabe, mas é bom pensar que palavras e ações contra-hegemônicas estão ocorrendo e se difundindo. Quem não gosta de críticas à forma como as coisas estão postas, acaba celebrando o comportamento do caçador, e deve arrepiar os braços de emoção vendo-o enunciado de modo tão explícito e sem rodeios como neste vídeo:


Agradeço a meus alunos de História Contemporânea I, Vinicius Motta e Vitor da Cruz por me apresentarem esse video

"Tempos Líquidos" foi publicado no Brasil pela Jorge Zahar e é bem baratinho.

sábado, 1 de outubro de 2011

O vaqueano do Quaraí



A imagem busquei aqui  http://rsemfoco.blogspot.com/2011/02/mitos-e-lendas-do-sul-negrinho-do.html



O que eu sei do mulato Adão? Quase nada. Umas poucas informações encontradas nas folhas amarelas de um antigo processo criminal, em uma tarde cinzenta de pesquisa no arquivo.

Foi um alvoroço: chegou até o delegado de polícia de Alegrete uma denúncia de que se estavam seduzindo alguns escravos, ali e no município vizinho, para que fugissem para o Estado Oriental, com chamavam o Uruguai naqueles tempos. Era outubro de 1850. O acusado era Paulino, qualificado pelo delegado como sendo um “soldado desertor”. A denúncia fora feita por Maneco Meu Deus, capataz de estância. Maneco descobrira que os escravos do seu senhor tinham sido convidados para fugir. Escrevera, então, um bilhete a outro senhor, dando conta que seu escravo, o mulato Adão, também havia entrado no convite. Além dele, teriam sido convidados cativos de mais três senhores.

 Os convites teriam sido feitos por Paulino. Em seu depoimento, o senhor do mulato Adão contou que recebera o bilhete com o aviso e interrogara seu escravo. Adão dissera que, de fato, recebera o convite, mas que não tinha aceitado. Ao que o senhor disse ter “castigado, correcionalmente”, o escravo.

Até aí, temos uma história sobre um homem livre, provavelmente desertor que, sabe-se lá por quais motivos, teria tentado organizar uma fuga de escravos para o Uruguai. Acontece que novas testemunhas declararam que, na verdade, a fuga estava sendo orquestrada, em conjunto, pelo “desertor” Paulino, por um escravo de nome Manoel e pelo próprio mulato Adão. Manoel e Adão foram acareados e acusaram-se mutuamente. Depois, descobre-se que Paulino havia trabalhado como peão, em algumas das estâncias cujos escravos estavam envolvidos na fuga. Pode ter funcionado como um elo de ligação, um comunicador. Entenda-se bem, os escravos não viviam em campos de concentração. Deslocavam-se, alguns viajavam e trabalhavam por certos períodos longe de seus senhores. Escravos de senhores diferentes visitavam-se, como comprova o fato de que muitos eram compadres. Mas uma fuga assim, envolvendo cativos de quatro estâncias diferentes, separadas por dezenas, talvez por mais de uma centena de quilômetros, exigia um pouco mais de logística.

Em seu depoimento, o preto Manoel declarou que Adão organizara a fuga gabando-se de ser “vaqueano do Quaraí”, ou seja, afirmando conhecer os caminhos e rotas de escape através do rio que fazia a divisa entre os dois países. Investigando um pouco mais, soube-se que Adão tinha um histórico de fuga. Foi perguntado se era verdade que já havia fugido uma vez para o “Outro Lado”. Sim, isso era verdade, contou o escravo. Porém, arrependera-se, pois o Uruguai encontrava-se em guerra. Chegando no Salto (cidade uruguaia),  “agarraram-no para ser soldado”. E, como ele era “inimigo de ser soldado”, desertara do exército e voltara a apresentar-se a seu senhor. Diz ter conseguido, deste, a promessa de ser vendido. Esse fato conta a favor da hipótese de que Adão tenha mesmo sido um dos organizadores da fuga, tanto mais quando sabemos que alguns dos convidados eram escravos de um Coronel da Guarda Nacional, e que haviam prometido roubar as armas que seu senhor tinha no paiol. Adão sabia que era perigoso ir para o Outro Lado sozinho e desarmado.

Durante muito tempo, os historiadores acharam difícil que a escravidão fosse importante nas estâncias do Rio Grande do Sul. Um dos argumentos era justamente o custo da vigilância sobre escravos que trabalhavam a cavalo, em um mundo sem cercas, próximos à fronteira com países onde a escravidão não existia mais. Hoje, isso caiu por terra, a história da escravidão avançou e se sabe que as formas de manutenção dessas relações não eram apenas a vigilância e a coerção, embora elas também estivessem presentes. Entre muitas outras coisas, o caso do mulato Adão mostra como cruzar a fronteira era algo difícil e que não garantia, automaticamente, uma situação muito melhor do que a vida da qual se fugia. 

Seja como for, eu fiquei a imaginar o mulato Adão, com seus planos novamente frustrados, pensando nas consequências daquilo. Se iria lhe render uma nova surra. Ou, talvez, se seu senhor, convencido de que ele não tinha mesmo arrumação, agora realmente daria jeito de vendê-lo. Seria uma vitória. Ou, quem sabe, enquanto saía da casa do delegado e era levado de volta à estância, antes que ficasse de novo conversador e bem disposto, talvez tenha olhado para o sul e refeito mentalmente, metódico e convicto, o mapa das quebradas do Quaraí.

domingo, 4 de setembro de 2011

A Legalidade, meus brinquedos e um punhado de batatas fritas


Congressos acadêmicos são comuns na vida dos historiadores. Assim, não havia nenhum assombro em acordar bem cedo, juntar as coisas e entrar em um carro com mais três colegas, 300 quilômetros rumo ao sul, para um evento na Universidade Federal de Pelotas. Durante o dia, tudo dentro do previsto: comprei doces depois do almoço e a tarde transcorreu com uma mesa-redonda em que estive acompanhado por outros dois pesquisadores.

Porém, à noite, eu faria uma das conferências, cujo tema, muito acadêmico, eram as pesquisas de história social sobre o sul do Brasil no século XIX. Acontece que, na mesma seção, falaria sobre o Movimento da Legalidade não um pesquisador, mas Sereno Chaise, ex-governador do estado e que era deputado ao tempo do movimento. Não são poucos os textos que trazem reflexões sobre a diferença de posição dos protagonistas da história e dos estudiosos que não viveram aqueles tempos. Em ambos os casos, há vantagens e problemas na hora de analisar um processo histórico, mas não há dúvida que os discursos, as explicações e as narrativas produzidas serão feitas de matéria distinta. Para minha sorte, eu não iria falar sobre a Legalidade e sim sobre gente que já havia morrido há mais de 100 anos e que nem eu, nem meu companheiro de mesa, havíamos conhecido. Porém, para mim, a experiência era impar.

Se alguém ainda não sabe, o Movimento da Legalidade foi deflagrado em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros. O vice-presidente, João Goulart (PTB), estava em missão na China. Os ministros militares comunicaram que ele não poderia assumir e que, se o tentasse, seria preso ao desembarcar em solo brasileiro. Leonel Brizola,  governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Goulart, organizou a resistência da Legalidade, requisitou a aparelhagem da rádio Guaíba e entrincheirou-se na sede do governo estadual, o palácio Piratini, em Porto Alegre, junto com correligionários e protegido pela Brigada Militar do RS. Na praça da matriz, em frente ao palácio, milhares de pessoas faziam vigília em apoio ao movimento. No lance mais espetacular, a base aérea de Canoas (RS) recebeu ordem para bombardear o palácio Piratini, dando início a uma guerra civil. Porém, os oficiais aviadores não conseguiram decolar porque os sub-oficiais e sargentos sabotaram os aviões e protagonizaram uma insurreição. O movimento ganhou força quando o comando do 3º. Exército, sediado no sul, aderiu a ele. Quando o presidente João Goulart chegou a Porto Alegre, anunciou sua decisão de aceitar uma solução conciliatória, um parlamentarismo que lhe retirava o poder efetivo. A multidão na praça frustrou-se e há quem diga que Brizola e Jango brigaram feio. De qualquer modo, foi um dos momentos marcantes da história da democracia brasileira.

Pois Sereno Chaise era deputado estadual e, possivelmente, o amigo mais próximo de Brizola, estando sempre ao lado dele naqueles tempos. Eu não tenho qualquer simpatia por políticos. Tendo sempre a desconfiar deles. E também não concordo com a antiga corrente historiográfica que via nos fatos e personagens políticos o único objeto de interesse da História. Porém, após quase duas horas ao lado de Sereno, ouvindo-o falar e responder perguntas, chegou a minha vez. Eu deveria expor minhas reflexões sobre o longínquo século XIX. Confesso que me senti como um menino que fora convidado a falar a todos sobre seus brinquedos. Até acho que não cometi nenhum disparate, porque o público ficou até o fim. A verdade é que gostei de ouvir aquele homem dizer, aos 83 anos de uma vida cheia, que tivera muitas dúvidas e que ainda as tinha. Ele dissera que não conseguia julgar as decisões tomadas por Brizola, por Jango. Quem sabe o que vem depois? Afinal, ninguém pode prever o futuro. Mas é preciso posicionar-se.  Ali estava algo que ficou no fundo do meu pensamento mesmo depois da fala. Desejei muito que alguns historiadores, cientistas sociais e militantes políticos ouvissem aquilo. Desmontaria muito do mecanicismo e teleologia em algumas formas de ver a História. Eu quero distância de governantes e historiadores que não tenham dúvidas.

Tudo isso seguiu comigo mesmo depois, quando fui jantar com colegas e encontrar amigos e rir a valer. No outro dia, voltamos viajando de carro pelas vastidões dos campos da serra do sudeste, mateando e conversando fiado. Por insistência aventureira do meu compadre José Iran, deixamos a estrada e nos metemos em Santana da Boa Vista, que faz jus ao nome. Comemos uma a la minuta. Estava com muita fome, então meu julgamento está comprometido, mas gostei de comer batatas fritas com gosto verdadeiro, sem essa padronização horrorosa que deixa qualquer petisco de boteco com gosto de Mac Donalds. Recomendo. Fica em frente à praça, em diagonal com o clube.




quinta-feira, 11 de agosto de 2011

No Coração do Império




Quando penso nas convulsões na Inglaterra, é inevitável lembrar dos pensamentos do personagem de “O Coração das Trevas”, enquanto descia o rio, partindo do coração do Império, cuja luz a todos cegava, para o mundo da “escuridão”. Há muitos universos nessas palavras:

E nada é realmente mais fácil para um homem que tem, como diz o ditado, ‘seguido o mar’, com reverência e afeição, do que evocar o grande espírito do passado nos trechos mais baixos do Tâmisa. O fluxo da maré corre para cá e para lá num trabalho incessante, repleto de memórias de homens e navios que conduziu ao lar e a batalhas no mar. Conheceu e serviu a todos os homens de quem a nação se orgulha, de Sir Francis Drake a Sir John Franklin, todos fidalgos – com ou sem títulos – os grandes cavaleiros andantes do mar. Deu origem a todos os navios cujos nomes são como jóias brilhando na noite do tempo, desde Golden Hind, voltando com seus largos costados cheios de tesouros, para ser visitado por Sua Alteza, a Rainha, e desaparecer, depois, nos desvãos da História, até o Erebus e o Terror, destinados a outras conquistas, e que jamais retornaram. Conheceu os navios e os homens. Partiram de Deptford, de Greenwich, de Erith – os aventureiros e os colonos; navios de reis e navios de homens de negócios; capitães, almirantes, os tenebrosos ‘atravessadores’ do comércio com o Oriente, e os ‘generais’ comissionados das frotas das Índias Orientais. Em busca de ouro ou fama, todos partiram por aquele rio, segurando a espada, e frequentemente a tocha, mensageiros dos poderosos, levando uma centelha do fogo sagrado. Que grandezas não navegaram suas correntezas até o mistério de uma terra desconhecida!... Os sonhos dos homens, semente de nações, germe de Impérios.”

O Coração das Trevas
De Joseph Conrad. Tradução de Albino Poli Jr.

sábado, 23 de julho de 2011

O terror ocidental

Fonte da foto: http://www.portugues.rfi.fr/geral/20110722-estados-unidos-e-europa-condenam-explosoes-em-oslo



Eu sempre hei de me lembrar daquela manhã remota de 11 de setembro de 2001. Era meu aniversário, eu tinha aula à noite e a prepararia à tarde. Assim, fui à academia pela manhã. Quando comecei a correr na esteira, vi que todos prestavam atenção à TV. E que um edifício fumegava. Em menos de dez segundos, um avião entrou no prédio ao lado.
Como historiador, fui chamado a falar em um programa de rádio, dei entrevista para um jornal e dei várias palestras para professores e alunos da educação básica. O tom era sempre o mesmo. Buscava explicar que nosso imaginário havia sido condicionado a associar três palavras que não estavam, essencialmente, articuladas entre si: árabe, muçulmano e terrorista. O problema principal é que, cada vez que se falava uma dessas palavras, as outras apareciam junto. Explicava que nem todo árabe é muçulmano, assim como nem todo muçulmano é árabe. E, naturalmente, nem todo terrorista é árabe e muçulmano. Falava do terrorismo ocidental e católico. Do IRA, do ETA. Argumentava o quão pernicioso é esse discurso que cria um estereótipo que nubla nossa visão e institui preconceito, ignorância e ódio.
Fazia, também, o histórico das agressões das potências ocidentais ao Oriente. Tentava analisar o terrorismo como um contra-ataque, nem por isso menos terrível, a uma contínua ação assassina do Ocidente.
Não sei o quanto minhas palavras podem ter composto a matéria das reflexões que meus ouvintes construíram sobre o assunto. Mas tenho certeza que uma das funções do estudo da História é mostrar como as coisas são mais complexas e não devem ser encaradas com simplificações construídas para nos enganar.
Neste momento em que escrevo, ainda não há como ter certeza, mas os indícios apontam que os assassinatos terroristas perpetrados na Noruega vieram de um radical de extrema-direita. Branco, louro, de olhos azuis, cristão e europeu.
Esse terrível episódio, como todos, também tem fundas raízes históricas. Na construção de impérios europeus sobre África e Ásia a partir do século XIX. Na expansão de um sistema capitalista que, agora, empurra levas de migrantes de pele escura em busca de uma vida melhor no hemisfério norte. No ódio “racial” e social que sempre foi o sangue que alimentou o monstro da extrema-direita.
Além de tudo, essa tragédia é a concreta exemplificação da falsidade dos discursos construídos no ocidente, que buscaram associar o terror apenas ao “outro” e construir a si mesmo, em contrapartida lógica, como a parte mais evoluída, mais capaz e mais civilizada da humanidade.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Voltando para New Orleans. Dia Mundial do Rock

A origem de "The House of the Rising Sun" é controversa e há quem diga que deriva de antigas canções medievais inglesas. Ao menos, isso parece ter sido assumido pelo "The Animals", quando construíram essa versão emblemática, que começa justamente lembrando uma canção de bardo. 
Quem não conheça o grupo e escute a música inadvertidamente, talvez imagine um vocalista com longos cabelos a cair sobre os ombros, roupas colantes e negras, postura agressiva, quase mística. Ao ver o vídeo da gravação original, talvez fique fascinado pelo surrealismo que vem a nós, no século XXI, ver esses meninos que lembram aos desavisados um visual meio-beattles meio tripulação da Entreprise. Todos seus contemporâneos.
Mas atente para o prenúncio do progressivo, para a virtuose do teclado, para a força do vocal.



A música, porém, não parou aí e teve muitas outras versões. De todas, destaco uma que de tão bela, alcançou para mim o status de verdadeira maravilha. Ela tem vida própria. Nos leva direto aos sons negros, doloridos e poderosos de New Orleans, cuja beleza e tragédia está na letra. E é com Nina, em uma configuração estética de quadro pintado figurando o jazz. Com outra virtuose no piano. Com sua voz que me toca na pele.


De onde nasceu e como foi temperado o rock? Tornou-se matéria de protesto, de erotismo, de dor e beleza. Do sul faulkneriano dos Estados Unidos. Do norte industrial da Inglaterra. Da Idade Média. Da África sem tempo. Feliz Dia Mundial do Rock. 

sábado, 21 de maio de 2011

Possíveis propostas do 15M na Puerta del Sol

As manifestações que ocorrem por toda a Espanha e que ganharam emblema na "Puerta del Sol", em Madri, são movimentos vivos e de destino imprevisível. Os céticos apontam que se trata de um modismo ditado pelas redes virtuais e que, quando a chama do fogo de artifício se esgotar, os manifestantes voltarão para casa sem mais recordações do que fotos espirituosas tiradas em meio à multidão. De sua parte, os entusiastas apontam essa como a porta de entrada para um novo tipo de prática, de uma renovada democracia, que indica efetivamente novos tempos. Daí o emblema escolhido sem qualquer acaso "Porta do Sol". Prever o futuro é coisa que historiador não arrisca, porque conhece a história o suficiente para saber que há tantos fatores em jogo que é impossível para qualquer analista contemporâneo ter as informações suficientes para traçar uma projeção segura, embora cartomantes, videntes e economistas sejam useiros e vezeiros desse tipo de jogo de adivinhação social.

http://periodismohumano.com/sociedad/aqui-esta-ocurriendo-algo-grande.html
Ainda assim, não há dúvida que as manifestações não podem ser ignoradas e precisam, no mínimo, ser entendidas como um recado, como um sintoma, como a emergência de algo já existente que exige ser visto por quem tiver olhos para ver, o que é, aliás, o próprio sentido da palavra "manifestação".
Tenho acompanhado com curiosidade e interesse esses eventos. Indo a este link pode-se ter acesso a algumas das propostas tiradas na imensa assembléia da Puerta del Sol.
Fiquei tentado a comentá-los, mesmo correndo riscos, pois não tenho ideia se esses pontos foram mesmo tirados em efetiva assembleia, nem tenho como conhecer as formas de representação real dentre os manifestantes. Quem sabe estarei comentando sobre algo já pronto, feito por meia dúzia de pessoas pretendendo posar de vanguarda de um movimento que parece bastante impessoal. Mas acho que não é esse o caso e vamos lá, assim mesmo.
A plataforma parece ter forte revivescência social-democrata, o que é já um reconhecimento de que o dito partido de centro-esquerda espanhol (PSOE) não tem conseguido desempenhar um papel a contento, pois as revoltas dirigem-se, em parte, contra o bi-partidarismo (PP x PSOE). A grande crise econômica iniciada em 2008 aparece claramente na proposta de estatização de toda a instituição financeira que tiver que se socorrer nos cofres públicos (BRAVO!). Há pontos mais gerais, como a exigência do compromisso com a educação e a saúde públicas. E também pontos específicos como os que tratam da pretendida reforma eleitoral.
A plataforma anti onda liberal aparece também na demanda pela recuperação de empresas públicas privatizadas e no pedido de regulação estatal real das relações de trabalho. Ou seja, na contra-mão de toda a catilinária sobre “flexibilização” das leis trabalhistas exigidas pelo deus do mercado a quem todos os países devem servir sob pena de serem excomungado da “sagrada” competição mundial. A atenção aos cidadãos cuja vida vem sendo precarizada está explícita na referência à lei de dívidas e hipotecas.
Aparece a pontuação de que é chegado o momento em que não se suporta mais ter que dar soluções individuais para problemas que são gerados socialmente.
Encontram-se, também, propostas sintonizadas com o movimento “verde” e com o contexto da União Europeia e das migrações. Elas aparecem, entre outras, na exigência do fechamento das usinas nucleares e promoção de novas formas de energia renováveis e gratuitas. Também na demanda por livre circulação de pessoas. A lamentável participação espanhola nas ações da OTAN tem resposta em uma utópico mas belo manisfesto pelo fechamento das fábricas de armamentos e pelo grito pacifista de “não à guerra”.
A história é também evocada em vários momentos. De uma parte, quando se exige educação laica, em um país onde a sombra sinistra do Santo Ofício ainda se faz sentir com tanta força. O artigo 15, que propõe a recuperação da memória história da luta pela democracia na Espanha, vitimada pelo franquismo por tantas décadas no século XX, é uma estocada certeira onde se busca empregar a evocação histórica como arma.
Por fim, ao invés de uma festividade desordenada e carnavalesca, o que essas demandas parecem mostrar é uma profunda crença no Estado e na democracia com promotores de um mundo menos absurdo, ainda que sob formas renovadas de busca de participação e controle dos cidadãos sobre e por dentro desse sistema. Do contrário, não teríamos pedido por reformas eleitorais e mais regulação estatal na economia, na educação, na saúde e na regulamentação das leis do trabalho.
Enfim, pode ser que nada disso represente o movimento que, desculpem-me mas não há palavra melhor, ainda está mesmo em movimento e parece heterogêneo e bastante difuso. Ainda assim, essas propostas, se realmente refletirem de algum modo o sentimento geral, estão ecoando a profunda insatisfação de toda uma geração contra as promessas não cumpridas não apenas da social-democracia, mas sobretudo do receituário neo-liberal, do pensamento de que “não há outro jeito”. Outros modos se inventam e os que apostam em qualquer tipo de paralização ou “fim” da história sempre me parecem mais lunáticos dos que os que, por mil motivos diferentes, erguem suas vozes, de uma forma ou de outra, para declarar que do jeito que está não pode continuar e que sempre é possível inventar novos modos de ser.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sobre brasões e "descendências"

Uma coisa que me tira do sério é gente enchendo a boca para dizer que é europeu, só porque um bisavô seu nasceu na Alemanha ou na Itália que, aliás, nem tinham esses nomes quando o ancestral veio ao mundo. 
Que se entenda bem, não tenho nada contra quem faz cidadania italiana, portuguesa, alemã. Acho até legal. É possível que ainda faça a minha. Não vejo mal nenhum em se pertencer a mais de uma nacionalidade. A questão é como se trata o fato de ter essa origem.
O problema aparece quando os descendentes de europeus utilizam um discurso onde fica claro ou subentendido que isso agrega a eles uma qualidade superior. O mecanismo que gera essas visões tem várias engrenagens. Em primeiro lugar, está um desprezo pelo Brasil, ao qual, por vezes, se agrega os adjetivos "pobre", "atrasado", "mestiço". Junto a isso, vem um enaltecimento da Europa como lugar "rico", "civilizado", "moderno", "branco". A  origem europeia é vista como capaz de transmitir aos seus "afortunados" portadores qualidades como o amor ao trabalho, a ordem e a alta cultura. Essa transmissão se daria, ou por tradição cultural, ou, nos casos menos defensáveis, é vista como sendo dada pela própria biologia, em uma sobrevivência de explicações raciológicas.
Acontece que a Europa de onde saíram milhões de emigrantes para diversas partes da América, no século XIX e início do XX, era um lugar de industrialização, mas também de grande geração de miséria. A lenta dissolução dos direitos consuetudinários ao uso da terra proletarizou inúmeras famílias camponesas. A expansão da indústria arruinou o artesanato tradicional. Foram esses deserdados famélicos que vieram buscar melhor sorte nas novas terras. Ou alguém pensa que foram muitas as pessoas de boa condição social a aceitar a aventura de atravessar o oceano e começar de novo em outro mundo?
Adoro ser historiador, mas esta profissão tem algumas maldições. Uma delas é o parente de um amigo que fez a genealogia da família e nos garante que descende de Carlos Magno pela linha materna e de Adão pela paterna. Aí diz que "tem descendência" alemã ou italiana e que seus ancestrais europeus, que migraram para o Brasil, eram nobres. Daí te mostra o brasão da família, em cima da churrasqueira. 
Dá vontade era dizer que: 1- Não é "tenho descendência" e sim "tenho ascendência" ou "sou descendente", pois "ter descendência" alemã significa que você tem filhos ou netos alemães. 2- Salvo raríssimas exceções, as pessoas que vieram para o Brasil eram miseráveis que buscavam um futuro onde pudessem fazer três refeições por dia. Os antigos servos tomavam o nome de seus senhores ou da região em que viviam (o que dá no mesmo, pois os nobres muitas vezes tinham títulos que incorporavam o nome de seu senhorio). Assim, aquele brasão não é da sua família, companheiro, mas dos nobres que a exploravam.
Mas, na maioria das vezes, não digo nada. Dou um sorriso amarelo e sigo adiante.
Não sou um nacionalista inveterado mas aprecio a adorável mistura que formamos. Além disso, assim como ocorre com a Caminhante, também a mim enerva essa mania de glorificar tudo que é estrangeiro só porque não é do Brasil. Quando morei no Rio de Janeiro que, desde a Era Vargas, dita o modelo do que é ser um natural deste país, percebi que eu não era brasileiro. Depois, morei na França e percebi que era. Ou seja, por mais diferente que eu fosse de um carioca, era muito mais parecido com ele do que com um francês. Ao mesmo tempo, quando vejo os filmes do Fellini ou do Moniccelli sobre as cidadezinhas da Itália, fico impressionado como aquilo tem a ver com a cidade onde nasci e com a minha família. Reconheço em mim muito dos traços daquela cultura e também da alemã, que vem por intermédio de meu avô materno. Não me orgulho desses traços mais do que me orgulho de minha origem indígena ou negra. Mas os reconheço, às vezes com raiva, às vezes com terno e verdadeiro afeto, mas não porque sejam brasileiros, ou italianos ou alemães, e sim porque me remetem à infância, aos meus avós, pais, tios.
As origens culturais estão e mim e me constituem. Não há como fugir e até gosto disso. O nacionalismo radical não. Essa escolha, sim, eu posso fazer.