sábado, 1 de outubro de 2011

O vaqueano do Quaraí



A imagem busquei aqui  http://rsemfoco.blogspot.com/2011/02/mitos-e-lendas-do-sul-negrinho-do.html



O que eu sei do mulato Adão? Quase nada. Umas poucas informações encontradas nas folhas amarelas de um antigo processo criminal, em uma tarde cinzenta de pesquisa no arquivo.

Foi um alvoroço: chegou até o delegado de polícia de Alegrete uma denúncia de que se estavam seduzindo alguns escravos, ali e no município vizinho, para que fugissem para o Estado Oriental, com chamavam o Uruguai naqueles tempos. Era outubro de 1850. O acusado era Paulino, qualificado pelo delegado como sendo um “soldado desertor”. A denúncia fora feita por Maneco Meu Deus, capataz de estância. Maneco descobrira que os escravos do seu senhor tinham sido convidados para fugir. Escrevera, então, um bilhete a outro senhor, dando conta que seu escravo, o mulato Adão, também havia entrado no convite. Além dele, teriam sido convidados cativos de mais três senhores.

 Os convites teriam sido feitos por Paulino. Em seu depoimento, o senhor do mulato Adão contou que recebera o bilhete com o aviso e interrogara seu escravo. Adão dissera que, de fato, recebera o convite, mas que não tinha aceitado. Ao que o senhor disse ter “castigado, correcionalmente”, o escravo.

Até aí, temos uma história sobre um homem livre, provavelmente desertor que, sabe-se lá por quais motivos, teria tentado organizar uma fuga de escravos para o Uruguai. Acontece que novas testemunhas declararam que, na verdade, a fuga estava sendo orquestrada, em conjunto, pelo “desertor” Paulino, por um escravo de nome Manoel e pelo próprio mulato Adão. Manoel e Adão foram acareados e acusaram-se mutuamente. Depois, descobre-se que Paulino havia trabalhado como peão, em algumas das estâncias cujos escravos estavam envolvidos na fuga. Pode ter funcionado como um elo de ligação, um comunicador. Entenda-se bem, os escravos não viviam em campos de concentração. Deslocavam-se, alguns viajavam e trabalhavam por certos períodos longe de seus senhores. Escravos de senhores diferentes visitavam-se, como comprova o fato de que muitos eram compadres. Mas uma fuga assim, envolvendo cativos de quatro estâncias diferentes, separadas por dezenas, talvez por mais de uma centena de quilômetros, exigia um pouco mais de logística.

Em seu depoimento, o preto Manoel declarou que Adão organizara a fuga gabando-se de ser “vaqueano do Quaraí”, ou seja, afirmando conhecer os caminhos e rotas de escape através do rio que fazia a divisa entre os dois países. Investigando um pouco mais, soube-se que Adão tinha um histórico de fuga. Foi perguntado se era verdade que já havia fugido uma vez para o “Outro Lado”. Sim, isso era verdade, contou o escravo. Porém, arrependera-se, pois o Uruguai encontrava-se em guerra. Chegando no Salto (cidade uruguaia),  “agarraram-no para ser soldado”. E, como ele era “inimigo de ser soldado”, desertara do exército e voltara a apresentar-se a seu senhor. Diz ter conseguido, deste, a promessa de ser vendido. Esse fato conta a favor da hipótese de que Adão tenha mesmo sido um dos organizadores da fuga, tanto mais quando sabemos que alguns dos convidados eram escravos de um Coronel da Guarda Nacional, e que haviam prometido roubar as armas que seu senhor tinha no paiol. Adão sabia que era perigoso ir para o Outro Lado sozinho e desarmado.

Durante muito tempo, os historiadores acharam difícil que a escravidão fosse importante nas estâncias do Rio Grande do Sul. Um dos argumentos era justamente o custo da vigilância sobre escravos que trabalhavam a cavalo, em um mundo sem cercas, próximos à fronteira com países onde a escravidão não existia mais. Hoje, isso caiu por terra, a história da escravidão avançou e se sabe que as formas de manutenção dessas relações não eram apenas a vigilância e a coerção, embora elas também estivessem presentes. Entre muitas outras coisas, o caso do mulato Adão mostra como cruzar a fronteira era algo difícil e que não garantia, automaticamente, uma situação muito melhor do que a vida da qual se fugia. 

Seja como for, eu fiquei a imaginar o mulato Adão, com seus planos novamente frustrados, pensando nas consequências daquilo. Se iria lhe render uma nova surra. Ou, talvez, se seu senhor, convencido de que ele não tinha mesmo arrumação, agora realmente daria jeito de vendê-lo. Seria uma vitória. Ou, quem sabe, enquanto saía da casa do delegado e era levado de volta à estância, antes que ficasse de novo conversador e bem disposto, talvez tenha olhado para o sul e refeito mentalmente, metódico e convicto, o mapa das quebradas do Quaraí.

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