quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Coisas que eu queria fazer. E fiz!

Faz algum tempo, li este post em um blog que acabou. A autora abriu outro, também legal, mas eu gostava do nome daquele “Até aqui tudo bem! É a história de um homem que cai de um prédio. Enquanto cai, ele repete para se acalmar: até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem...”.

O post comenta uma lista feita pelo escritor Georges Perec, com um tema bem conhecido, as “50 coisas que eu gostaria de fazer antes de morrer.” Há coisas simples, mas há também outras improváveis e outras ainda impossíveis, lado a lado. Ir morar num hotel, ir ao Marrocos nas costas de um Camelo, conhecer Vladimir Nabokov. Leiam, vale a pena.

Com o clima de final de ano, fico sensível a tudo que diz respeito à passagem do tempo. Envelhecer não é lá uma coisa muito divertida: os cabelos caem da cabeça e nascem nas orelhas. Parece até provocação. Mas me parece melhor que a alternativa, que é a de morrer jovem.

Todavia, para que ninguém me ache muito soturno, escrevi também as minhas listas. A de coisas que eu ainda quero fazer (que não transcrevo agora). E outra, que segue, abaixo, com coisas que eu queria fazer, e fiz. Viram como não estou mal-humorado? É uma coisa boa poder elencar uns quantos sonhos realizados. Aí vão eles (naturalmente, não seguem nenhuma ordem):

- Ser professor.
- Escrever um livro.
- Viver um grande amor.
- Ser criança em uma cidade com um rio.
- Pescar um peixe grande.
- Morar em uma cidade onde eu fosse estrangeiro. E viver a rotina dessa cidade.
- Jogar uma partida de futebol com uniforme, torcida e transmissão.
- Ter um filho. E sentir que ele confia em mim.
- Morar em Porto Alegre e ir a todos os jogos do Inter no Beira-Rio.
- Saber a diferença entre normandos e saxões.
- Ver os quadros dos impressionistas.
- Há mais uma coisa, porém não declaro, porque é pornográfica. Aliás, são duas.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Meu presente de Natal




Livros. Vinhos também, talvez algum CD. Mas livros. Sobretudo livros. 

Eu ia pensando nisso hoje à tarde, tentando comprar os presentes do povo aqui de casa, nesse momento agradável que é a ante-véspera de Natal, com todas os moradores desta cidade nas lojas, dando coices e cotovelaços uns nos outros, para conseguir fazer suas compras antes que chegue o fim do mundo. Juro: se eu ouvir mais uma vez a Simone cantando a música do John Lenon, eu vou apedrejar alguém. 

Foi então que entrei em uma livraria. E fiquei o restante da tarde. E todo o resto silenciou. A verdade é que não é de hoje que as livrarias me trazem um sentimento ambíguo. De um lado, uma vontade sem tamanho de ficar ali para sempre. Sozinho, com meus amigos, com todos de quem gosto. Ler um livro quieto. Olhar tantos outros. Comentar. Porém, junto vem uma angústia tremenda. De que adianta me afundar em dívidas e ceder ao consumismo, comprando muito mais livros do que posso pagar, se meu tempo é pouco? Quando é que vou ler todos esses livros? Admiro pessoas como Charlles Campos, que organizou sua vida profissional de modo a poder ler. Eu tentei fazer também, mas alguma coisa não está dando certo.

Assim, esqueçam o que eu escrevi acima. Livros são bem-vindos, claro, mas eu quero mesmo é tempo para ler. Ler com calma, pensando no que leio, fazendo relações, imaginando, criando mundos com a leitura, afinando meu olhar sobre tudo, através dessa arte. É isso. Quem me der tempo para ler, terá me feito um presente de rei.

sábado, 17 de dezembro de 2011

17 de Dezembro - Colorado das Glórias



Na tarde de 16 de dezembro de 2006 eu caminhava com a minha mulher pelas ruas do Menino Deus. Ela não tem nenhum interesse por futebol, embora seja colorada por tradição familiar e por não gostar do Paulo Santana, desde pequenininha. 

Era meu terceiro ano em Porto Alegre e assisti a quase todos os jogos do Inter no Beira-Rio, nesse espaço de tempo. O ano "Joel" em 2004. O campeonato que nos roubaram em 2005. Quase, quase. A grande Libertadores de 2006. Comentei então com a Nika, que aquela tarde deveria ser o momento mais lindo e nervoso e terrível e maravilhoso da minha vida de torcedor. No outro dia, bem cedinho, o Inter jogaria a final do Mundial de Clubes da FIFA. Nada menos do que isso.

No entanto, eu me sentia estranhamente anestesiado. Nem expectativa, nem aflição, nem gastura no estômago. O motivo: o adversário era o Barcelona. Por que justo na nossa vez? Podia ser outro time com menos credenciais! E os caras haviam triturado os mexicanos dois dias antes, como para não deixar dúvidas. Eu tentava me conformar com a ideia de uma derrota por escore baixo.

Por uma dessas estranhas simetrias, eu estava morando em Paris quando da final da Liga dos Campeões da Europa. Fui aos arredores do Stade de France no dia da final entre Barcelona e Arsenal, com meu amigo Bernardo Buarque, que estudava torcidas de futebol no doutorado (tem gente que saber viver, né?!). Vimos cenas inacreditáveis, como um torcedor do Arsenal que tentou pular a cerca, composta por algo como lanças de ferro, e ficou espetado por uma das setas. 

A noite do dia 16 foi tranquila, vi um filme e fui dormir como se nada de especial fosse acontecer no outro dia. Às 5 da manhã, o foguetório me acordou. E meu coração começou a bater no ritmo dos rojões. As horas até o início da partida foram intermináveis. Depois, quando tudo começou, cada passe do Barcelona era um tormento. O Inter ficava na defesa e conseguia conter as investidas do Barça, que dominava do jogo, mas não tinha contundência.

No intervalo, a Nika acordou e me perguntou: quanto tá? 0x0 disse, já com uma cara de louco que não conseguia mais trair para ninguém nem para mim mesmo a esperança desmedida de que a coisa poderia acontecer de que um golzinho complicava tudo de que futebol é uma caixinha de surpresas de que nada nada nada neste mundo é impossível e tantas loucuras mais quanto meu coração conseguia pensar e o jogo passando e o Fernandão machucado que merda agora é que não vamos ganhar isso nunca o Índio sangrando volta volta Índio estamos com um a menos e o Fernandão (emblema, ícone, herói) vai ter que sair mesmo mas quem é que tem estrela e talento e calma para fazer o tal gol do tesouro agora ningúem pode ter e está em campo o Gabirú mas era só o que me faltava...

...Índio - bico para a frente - Adriano Gabiru de cabeça no meio campo - Luiz Adriano de cabeça e corre na direita - Iarlei domina Iarlei acossado por dois catalães - Iarlei pra cima deles - Iarlei deixa Pujol tropeçando nas próprias pernas - Luiz Adriano pede na direita - Iarlei para Gabiru na esquerda na entrada da área - Gabiru e Valdés - a bola passando a linha - a bola batendo na rede - Inter Inter Inter...



Minutos finais mais loucos Nikelen que não gosta de futebol chorando de feliz e de nervosa dizendo é por isso que não gosto de assitir essa coisa eu caminhando de um lado para outro ajudando o Iarlei a segurar aquela bola na bandeirinha do escanteio falta que o Ronaldinho vai bater é quase pênalti minha nossa chuta passa a dois centímetros da trave... olha o contra-ataque Ronaldinho para Iniesta dentro da área CLEMER se acabou se acabou acaba juiz desgraçado vai acabar ACABOU... O INTER É CAMPEÃO DO MUNDO... 

E não lembro nada do que aconteceu nas duas semanas seguintes.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Tlön e a História


Ando com a impressão de que a História é um gênero da literatura fantástica. Talvez um gênero bem complicado, porque lida com a verdade.

Vejam só este excerto de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Borges:
 
Ahora tenia en las manos un vasto fragmento metódico de la historia total de un planeta desconocido, con sus arquitecturas y sus barajas, con el pavor de sus mitologías y el rumor de sus lenguas, con sus emperadores y sus mares, con sus minerales y sus pájaros y sus peces, con su álgebra y su fuego, con su controversia teológica y metafísica.” (Ed. Emecé, p. 23)

Não é exatamente isso o que fazemos?

Na página seguinte, alguém sugere que desistam de procurar os outros volumes da história e do mundo de Tlön, e sim que os escrevam. Calcula-se que uma geração de tlönistas deve bastar.

Parece-me bem semelhante às constelações de historiadores cartografando mundos desconhecidos.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Fundamentalismo religioso e esfera pública

Já faz algum tempo que acompanho um movimento de resistência e tomada de posição dos ateus e agnósticos nas redes virtuais. De modo militante e, por vezes, provocativo, procuram contrapor-se ao que chamam de avanço de uma religiosidade fundamentalista, vinda principalmente das chamadas igrejas neo-pentecostais, mas não só delas. Uma das polêmicas recentes se deu em torno deste texto da excelente jornalista Eliane Brum.

Demorei a me manifestar sobre o tema. Em primeiro lugar, porque não acho que eu tenha que ter posição a respeito de tudo. Aliás, se tem coisa que me dá nos nervos é uma pá de gente metida a intelectual que parece considerar que é sua missão divina opinar sobre tudo e qualquer coisa na net. Além disso, como sempre, procuro evitar a tentação de simplificar demasiadamente as coisas. E, por fim, tenho por princípio o respeito a todo sentimento e filiação genuíno das pessoas, como são muitos afetos religiosos, desde que não se transformem em base para regras sociais estendidas aos não-crentes.

Há bons estudos que fazem as perguntas certas: como e por que essas Igrejas funcionam e fazem sucesso? Entre várias respostas estão, por exemplo, o senso de comunidade e ajuda mútua que proporcionam. Certa vez, um conhecido de família evangélica me contou que, quando criança, precisaram se mudar, em busca de emprego. Na nova cidade, foram acolhidos por “gente da Igreja” a que pertenciam, o que permitiu que seu pai conseguisse um emprego e uma forma de começar a nova vida. O que, naturalmente, implicaria em novos dízimos para a Igreja.

Quando escrevo “senso” de comunidade, vou além dessas efetivas prestações materiais e incluo a própria sensação de conforto emocional oferecida pela comunidade. Uma arma potente para enfrentar a insegurança aterradora da vida. Sobretudo para aqueles que têm poucos meios de sobrevivência (embora esse nem sempre seja o público dessas Igrejas). Essa segurança emocional se apresenta também no oferecimento de uma versão simples e organizada das “regras do mundo”. Preto e branco: quem as segue, vai ao paraíso (começando por uma vida melhor aqui mesmo). Quem não segue, terá danação eterna. Os males deste mundo são causados por erros em relação a essa moral, infundidas por um ser maligno. A Igreja também oferece as armas e a ajuda para lidar contra essa fonte de males.

PORÉM, compreender nada tem a ver com gostar e concordar.

Nesse ponto, estou sintonizado com a reação de gente como eu: ateus e agnósticos. Fico apavorado quando vejo as ações coordenadas da “bancada evangélica” no Congresso contra as pesquisas com células tronco, contra a reprodução assistida, contra a união legal de pessoas do mesmo sexo. Lutamos por milênios para abrandar o sofrimento de pacientes com doenças neurológicas graves. Primeiro, para saber o que eram. Depois, para tentar dar esperança de uma vida mais autônoma, mais livre, às pessoas que sofrem desses males. E são milhões de seres humanos. Lutamos para que casais que não poderiam ter filhos pelos meios “naturais” (seja lá o que essa palavra signifique), pudessem realizar um sonho gestado a dois, às vezes acalentado por anos a fio. Para que pessoas que se amam e que teceram uma vida comum possam ter o direito de gerir o que construíram em conjunto. Essas são batalhas ainda travadas na atualidade, mas onde muito campo foi ganho.

É impossível para mim falar “de fora” desse assunto. Meu pai sofreu do Mal de Parkinson por mais de 40 anos. Ver a doença avançar inapelavelmente sobre sua mente hábil e sobre seu coração generoso não permite que eu tome outra posição. Meu filho só está comigo porque pudemos contar com a reprodução assistida. Eu sei que sou melhor por causa dele. Tenho amigos homossexuais a quem amo como irmãos. Ver a luta que precisam travar todos os dias, ataca minha alma. No mundo desenhado segundo os desígneos dos deputados evangélicos, que se dizem “emissários de deus”, gente como o meu pai deve sofrer e degenerar sem nenhuma esperança através de uma morte lenta e terrível. Nesse mundo, meu filho não estaria aqui. E meus amigos deveriam sofrer quietos a absoluta repressão de sua natureza.

Para mim, não é mais possível ficar em silêncio. O Estado que constituo como cidadão deve garantir a liberdade de credo para todos aqueles que assim o desejarem. Mas deve ser vigilante e ativo para impedir que crenças particulares coloquem freios nos avanços que a humanidade vem construindo para minorar o sofrimento e a dor. Para criar esperança.

Eu lamento que os modos de conseguir segurança e ajuda, para muitos, passem pelo dogmatismo religioso. Sei também que as devoções não dogmáticas podem, inclusive, ser fenômenos belos e interessantes. Posso concordar que assim seja, desde que isso não interfira nas formas como as leis e a organização pública se estruturam. Se for dessa forma, tudo bem que se acredite em deus, em Ísis, Osíris, em Jupter, Marduk ou no Visa. Agora, uma confissão: quando penso nos pastores que nem acreditam no que pregam e lucram milhões. Bom, aí eu realmente lamento que o inferno não exista.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tudo bem

Este post do blog do meu amigo Vitor Simon, sobre a força das expressões cotidianas, me lembrou de uma que eu considero maravilhosa. Creio que é mais usada no Rio Grande do Sul, mas talvez me engane.


Dois conhecidos se encontram. Um deles inicia a conversa, como de praxe: e daí? 


O outro então discorre um rosário de desgraças: minha mãe morreu, meu pai está paralítico, minha irmã continua bebendo, meu filho perdeu no jogo tudo que eu tinha, perdi meu emprego, minha mulher me largou.

Depois uma pausa breve e infinita, o outro pergunta: "E no mais, tudo bem?"



Não é fantástico? Acabaram-se todos os tormentos, os tempos de caos, enunciados anteriormente.


O outro, vencido, nada mais pode dizer, senão a resposta esperada: "É... no mais, tudo bem."

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Em silêncio

Era o final do meu terceiro dia em Montevideo. Depois de uma tarde abrasadora, passada metade em livrarias e metade em um simpósio, eu e uns colegas nos preparamos para percorrer a Avenida 18 de Julio, rumo à Ciudad Vieja. Nosso destino: a confraternização final do congresso. Nada mais prosaico, para quem costuma ir a esses eventos.

Acontece que, pela avenida, ia a manifestação do dia internacional de combate à violência contra a mulher.
Como se pode supor, houve atos no mundo todo. Ali, porém, a coisa parecia diferente. Talvez porque estivesse passando ao meu lado. Bem mais de mil pessoas, talvez o dobro, vestidas de negro. Em silêncio.

À frente, mulheres carregavam velas e cruzes púrpuras onde estavam escritos os nomes de suas mães, suas filhas, suas irmãs, suas amigas que haviam morrido vítimas da violência dos homens. Naquela que é uma das avenidas mais movimentadas da capital, ouvia-se apenas o som de milhares de passos.



Eu olhava aparvalhado quando meus colegas me chamaram para dentro. Já iam com a multidão. E me deixei ir. Fui olhando o rosto das pessoas, casais, velhos, crianças. Chegamos à praça. Fez-se um ato silencioso. Um silêncio de milhares.

Uma coisa é estar em um país estrangeiro e meter-se em algo assim pela atração do exótico. Quase como um programa turístico para quem não quer se parecer com o turista convencional. Comigo não foi assim. Foi espontâneo e surpreendente. Me vi no meio daquela gente, lendo os nomes das mulheres nas cruzes. Relendo. Mirando os olhos das mulheres que as carregavam.


terça-feira, 29 de novembro de 2011

Menino de alma leve, voando sobre o pelego

Meu avô contava histórias. Tomando mate, na varanda em frente à casa, nas viagens para “o campo” ou enquanto assava os churrascos de domingo. Histórias de seu pai alemão e de sua mãe cabocla. De seus irmãos sem fim. De tropeadas, de amores proibidos, de guerras tenebrosas. 

Havia uma narrativa que nunca faltava. Uma epopeia no fim do mundo. Uma migração para o oeste do Paraná, em 1952. Dois meses de viagem. A floresta, onças famintas, cobras que devoravam homens inteiros. Caminhar por dois dias sem dormir, no meio do mato, para buscar um naco de carne para minha avó grávida. Depois, o fracasso da empreitada e o retorno. Ouvi essa história mil vezes, mas nunca como queixa. Sempre como aventura.

Quando menino, passava as férias na casa deles. Já adulto, gostava de ir lá tomar mate e ouvir sempre as mesmas histórias. Porque nós é que mudávamos. Então as histórias também não eram exatamente iguais.

Nas duas vezes em que a minha mãe teve filhos, passou os primeiros dias na casa do meu avô. Eu, depois meu irmão, dormíamos em um bercinho ao lado da sua cama. Quando chorávamos, era ele quem acordava e nos levava até o quarto dos meus pais, para que minha mãe, meio dormindo, nos desse de mamar.

Ele me ensinou a fazer xixi nas flores dos jardins, a dizer barbaridades para os adultos, a levar os ratos que pegava na ratoeira, pelo rabinho, e jogar nas mulheres da casa. Nunca mais me diverti tanto.

Meu avô me ensinou a montar a cavalo e a dirigir. Faço os dois mal. O primeiro por minha culpa exclusiva. Ele era um ginete. O segundo, porque o professor também não ajudava nada.

Ele amava o campo, e andar a cavalo, e camperear. Eu não era de campo. Meu irmão sim, foi o filho ue ele nunca teve. Meu avô dizia que não havia sujeito mais feliz que ele, porque amava o que fazia. De tanto ouvir isso, larguei o Direito e fui fazer História.

Pensávamos muito diferente sobre a maioria das coisas. Ele era conservador, resistia a novidades, era cabeça-dura. Mas era amoroso como ninguém. Acarinhava os netos e as filhas. Quando chegava do campo, no fim do dia, dava um jeito de dar uns amassos na minha avó, quase derrubando-a por cima da pia ou atrás das portas.

Quando o Miguel veio para casa, ele, já nonagenário, percorreu mais de 100 quilômetros para ser um dos primeiros a embalar o pequeno.



Dele herdei a boca, as feições, a forma do tórax e o costume de dormir sentado. Queria ter aprendido seu otimismo, sua gana de não se entregar nunca, sua juventude eterna. Mas a vida não é exatamente como a gente quer.

O Vô Juvenal morreu ontem, aos 92 anos. E eu sinto que acabou uma era, na minha vida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Cidades invisíveis, mundos infinitos - pensando sobre Calvino, Pólo e o Kahn

Este post do Milton Ribeiro, bem como os comentários ali realizados, me fizeram voltar a Calvino e Borges. 

Amo “As cidades invisíveis”, de Calvino. É uma das minhas 10 obras preferidas (que, na realidade, devem somar mais de 50, entre elas Ficções, do Borges). Parte do texto abaixo, é transcrição do meu comentário lá no post.

Uma das coisas que mais gosto no livro de Calvino é o fato de que Kublai Kahn conquistou/herdou o maior de todos os impérios, mas está condenado a jamais conhecer muitos de seus territórios. Ele é um imperador incompleto. Quem olhar para ele, poderá ver vazios pungentes aqui e ali em seu corpo imperial. O Império é grande demais para os limites dos deslocamentos a cavalo, em camelo, nos barcos a vela e remo. O Império é grande demais para uma única vida. Assim, para conhecer o seu próprio Império e, de alguma forma, conhecer a si mesmo, o Imperador precisa dos outros, das narrativas que lhes fazem.

Então, ele faz uso de emissários, encarregados de viajar pelos confins e dar-lhes a conhecer através de seus relatos. Dentre eles, Marco Pólo é o mais amado, não porque viaje mais rápido ou percorra maiores distâncias, mas por sua arte de narrar. É através da palavra de Pólo que se presentificam as cidades para Kublai Kahn. Através, portanto, de um jogo inter-subjetivo que articula três pontas: o próprio Imperador, o narrador-viajante e as cidades, que nunca se saberá se existem mesmo ou se têm aquela forma. Mas não importa, porque a narrativa é o modo delas existirem para a experiência do grande Kahn. Pólo é o mago que restitui a inteireza ao imperador despedaçado.

Mas ninguém se engane com essa minha conversa sobre limites e inteireza. Outra característica do império do Kahn, e também das narrativas de Pólo, é que não se pode demarcar com certeza as suas fronteiras. Nas suas fronteiras não há muralhas. Há sim imensos espaços vazios, outros que são estradas, rios, oásis onde se misturam povos vizinhos e os habitantes do Império. Por ali vão e vêm o vento, os mercadores, os fugitivos, os viajantes.

O fato de ser impossível conhecê-lo de todo facilita-lhe a qualidade de infinito, de algo que pode ser continuamente reconstruído.

(ao que parece, a imagem que usei é o Mapa Mundi, de Fra Mauro, do século XV, talvez inspirado nas narrativas de Pólo. Busquei neste site aqui)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Oito motivos para ser amigo do Milton e da Cláudia


Claro, há muitos outros motivos, mas estes são alguns:

1- São receptivos, divertidos e inteligentes. Além disso, a Cláudia é bonita e o Milton é simpático!




2- Um dia, se tiver muita sorte, você poderá ser recebido na Edícula Real, no Solar da Gaurama, com sua sugestiva cortina de banheiro.


3- Você pode queimar o forno de micro-ondas deles e nada te acontece!


4- A Juno não pega.



5- A cozinha mágica da Cláudia


6- O Milton acredita nas minhas mentiras.


7- Eles têm amigos fascinantes, que podem virar seus amigos também!


8- Na casa deles, quando menos esperar, você pode ser surpreendido pela verdadeira BELEZA.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Bem-vindo Adriano!





Seja bem-vindo, Adriano! Meu segundo sobrinho. Ô família para fazer homem essa, seu! Te desejo toda a alegria que cabe nesta vida!

Terás grandes mestres no teu primo e no teu irmão. O Ângelo poderá te ensinar como chegar nas garotas delicada mas decididamente. Quando tinha três anos, na praia, andava em volta de uma castelhaninha perguntado para ela "Oi, sou o Ângelo. O que é o seu nome?" Ou, então, escolher o método do Miguel, bem mais incisivo. Com pouco mais de um ano, ofereceu uma flor a uma menina da mesma idade. Quando viu que ela aceitou, imediatamente, agarrou e lambeu o rostinho dela. Quase apanhei do pai da guria. Enfim, são estratégias diversas que estão à tua disposição, para empregares na criação das tuas próprias.

Com teu avô, poderás aprender a assar os melhores churrascos, além da incrível arte de enfiar 842 gomos de bergamota na boca, enquanto conta uma longa história e, depois, cuspir calmamente todas as sementes. Uma por uma. São 20 anos de convivência, e ainda me impressiono. 

Tua tia vai te encher de livros e de histórias. Tua vó faz o melhor mocotó do mundo e uma torta de mandioca que vou te ensinar a pedir a ela, em vezes que eu estiver junto. 

Com teu pai, poderás aprender coisas muito úteis: desde a grande sabedoria dos computadores, da marcenaria, da engenharia até a arte de dormir sentado e com os olhos abertos, em meio a 10 pessoas que conversam animadamente. Tua mãe saberá, como ninguém, te ensinar a lidar com as crianças e com os animais, te fará os melhores pães do universo (me convide, quando isso acontecer) mas, não posso te iludir, estás arriscado a ouvir Mariah Carey de vez em quando. Te garanto: eles são pais incríveis. Eu confiaria meus filhos a eles.

Eu vou te contar piadas, te ensinar a comer pitangas e já estou escolhendo as taquaras para fazer um campinho na chácara do teu avô. Mas, já vou avisando, faça boas escolhas, porque só podem jogar colorados, como teu primo, tua prima e teu irmão. Aliás, até deixo gremista jogar, mas só no gol. E, se defender pênalti, eu anulo. Vou te ensinar a correr os patos e a fazer xixi nas flores da tua avó.

Assim é a vida, nem sempre é justa, mas é bela, é divertida e é toda tua.


sábado, 15 de outubro de 2011

Valorização dos professores: carta aberta ao governador Tarso Genro


O que vou escrever aqui não é nenhuma novidade: educação de qualidade e transformadora só se faz com professores bem pagos, com tempo para refletir, escutar, dialogar e criar. A realidade do ensino público nos níveis fundamental e médio não poderia ser mais distante dessa obviedade. Mas essa é uma daquelas tragédias que vão perdendo sua capacidade de ferir, porque nos acostumamos. Ela não incomoda mais do que um segundo e passamos adiante, como se não houvesse jeito. Ela naturalizou-se.
Desculpem-me se vão ler de novo sobre isso. Mas, se é verdade que muita gente tem dito essas palavras, é também real o fato de que nossos ouvidos perderam a sensibilidade para elas. E, se nos acostumamos, a vida dos governantes fica muito, mas muito fácil.
O que se pede são salários dignos e, sobretudo, tempo remunerado para preparação de aulas, leitura, reflexão, inventividade. Fazer com que a carreira de professor seja desejada pelos jovens. Que eles olhem para ela e pensem que, além da realização pessoal, poderão morar bem, vestir-se com decência, criar seus filhos, viajar uma vez no ano. É pedir demais para quem investe tanto tempo em sua formação e desempenha o papel de formador dos brasileiros? Sugiro uma experiência. Perguntem a qualquer professor se deseja que seu filho siga a sua profissão. Eu fiz isso: as pessoas quase caíam em prantos ante a possibilidade.
O fato é que os sucessivos governos estaduais (de diversos estados, mas aqui, me refiro, especificamente, ao Rio Grande do Sul) aproveitam muito bem a ideia de que não há como mudar verdadeiramente essa situação. Reiteram tal chavão quando estão no poder. De minha parte, me nego a acreditar nisso. Trabalho no magistério federal em nível universitário. Assim, minha condição financeira é bem menos injusta do que a dos meus colegas sobre os quais escrevo aqui.
Porém, isso tem a ver diretamente comigo sim. Trabalho em um curso de licenciatura. Eu formo professores. Alguns de meus alunos farão mestrado e doutorado, serão professores universitários. Outros irão para as escolas da rede privada que, em parte, não foge da realidade que descrevo aqui. Mas, grande parte irá trabalhar na educação básica pública. Eles formarão a maioria dos cidadãos brasileiros. Gerações inteiras, proporcionalmente os mais precarizados e os que mais precisam de atenção, estímulo, esperança e qualidade. Se eu acreditasse que não há jeito desses profissionais terem salários e condições de trabalho dignas, como querem me fazer crer TODOS os governos, então eu iria procurar outra profissão.
Não estou dizendo que se deva equiparar os salários do magistério ao dos deputados, juízes, promotores, procuradores. Isso seria imensa ousadia, não é mesmo? Poderíamos começar respeitando o piso nacional. Depois, poderíamos pensar em, digamos, R$ 3.000,00 para um iniciante com, no mínimo, 50% para atividades extra-classe. Claro, isso implica investimento. Aliás, educação não tem sido vista como investimento, mas como despesa. Educação não é algo barato. Não pode ser visto como algo que deva ser feito com poucos recursos. Se começar assim, uma política de governo só pode dar errado.
Aqui, então, devo nomear declaradamente o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Votei nele e ainda não me arrependo do meu voto. Seu titubeio em instaurar o piso salarial nacional para o magistério, que ele mesmo criou quando estava no Ministério da Educação, foi assustador. Tornou-o igual à sua antecessora, de quem me eximo de escrever o nome em respeito a meus leitores. Agora, o governador Tarso Genro parece inclinado a pagar o piso, em ano vindouro. Contudo, quando se esperava algo realmente novo, suas modificações na educação estão relacionadas a uma avaliação dos professores.
Que justiça há em avaliar pelo mérito e pelo desejo de aperfeiçoar-se, professores que trabalham 60 horas em três escolas diferentes, interagindo com centenas de alunos que eles têm a obrigação de aprovar no final do ano sem nem ter certeza de cumprirem os requisitos básicos? Vão cobrar que busque se aperfeiçoar, saiba lidar com o mundo virtual, inove, seja criativo, prospectivo e quantas mais palavras a mentalidade empreendedora inventar para transferir para os trabalhadores da educação uma responsabilidade que, só em parte, é deles.
Avaliação é algo necessário, deve ser implantada com rigor, depois de amplo e eficaz diálogo com a comunidade de professores e com a sociedade. Porém, avaliação, tecnologia, gestão, qualquer coisa vem DEPOIS da concreta valorização do magistério. Só isso não basta, é certo. Depois, avaliações pertinentes devem trabalhar, junto com outras ações, para inibir e corrigir aqueles professores que não fizerem jus a seus salários. Mas a base de tudo está em professores bem pagos, Minha nossa, quantas vezes se tem que repetir essa obviedade?
Um governo que se diz democrático e popular deve tomar como prioridade a instalação da valorização do magistério. Mas o governador Tarso Genro parece inclinado a fazer o mínimo. Parece que sua ideia é poder brandir, ao final de seu mandato “fizemos mais do que a nossa antecessora”. Governador Tarso, me escute: se Vossa Excelência ficar quietinho sentado na sua cadeira, já terá feito mais que sua antecessora que, além de aviltar como muitos o magistério, ainda desaforou e foi mal educada, grosseira e patética no trato com os professores. O partido dela foi uma forças mais nocivas contra o ensino público também quando ocupou o governo federal. Isso todos nós sabemos. Mas eu pergunto: é só isso que o senhor quer? Essa é a ideia que tem de si mesmo como político? O senhor será um governador desse tamanhinho, só? Ajude-me a não acreditar nisso.
Com todo respeito, eu digo que a sua OBRIGAÇÃO, para honrar a trajetória de lutas que seu partido desenhou nas décadas de 1980 e 1990 é a de promover a valorização do magistério e, a partir daí, desencadear mudanças radicais na educação. Com que recursos, poderão perguntar. Mas eu sei, e sei que Vossa Excelência também sabe, que esses recursos cabe ao senhor e sua equipe terem criatividade para gerar. Tirem de algum lugar, encontrem, captem, sejam inventivos, ora. Estejam à altura de seus cargos e da confiança de milhões de gaúchos. Esteja o senhor à altura de seu próprio projeto como estadista. Não se contente em ser melhor que sua antecessora. Qualquer um seria.
Escrevo tudo isso sem esperança de que gere verdadeiro efeito no poder ou no que quer que seja. No fundo, penso que talvez a única força que pode propulsar tamanha modificação nas mentes e no peito da sociedade e dos governantes, é uma retumbante ação de protesto por parte do magistério. Algo realmente grande e forte e pacífico e firme até o fim. Sem aceitar nada menos do que a concreta valorização. Mas será que ainda podemos exigir mais isso dos professores, que já fazem tanto, com tão pouco?
Ainda assim, minha impressão é a de que, sem mobilização da categoria e da sociedade, o governo seguirá na cômoda posição de dar um pequeno aumento percentual e vangloriar-se de estar fazendo grande coisa.
Será que posso ter esperanças de estar enganado?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Era da Incerteza: de que lado estamos

Em seu Tempos Líquidos (um livrinho bem maior por dentro do que por fora), o sociólogo polonês Zygmunt Baumann faz uma condensação de muitas das idéias que expôs em obras anteriores. Creio não ser errado dizer que o livro é uma síntese delas. Confesso que meu gosto pelo livro foi aumentando conforme o lia e chegou ao ápice no último capítulo. Ali, o velho pensador faz uma avaliação quase poética sobre a utopia.

Zygmunt Baumann

A visão medieval e tradicional do homem como um guarda-caça, que deve zelar pelo mundo deixando-o como Deus criou, teria sido sucedida, no período moderno, pela utopia do jardineiro. Os homens acreditaram poder substituir um suposto criador e, eles mesmos, recriarem o mundo. Não mais a natureza com sua ferocidade e imperfeição, não mais a floresta, mas sim o jardim planejado, simétrico, inequívoco. Fruto da arte do homem. Hoje, temos a ruína da utopia do jardineiro, gerada, entre outros motivos, pela frustração derivada do fato dela não ter trazido a perfeição que prometia. E, também, do perigo autoritário devido à essa busca de perfeição. Porém, não se colocou algo necessariamente melhor no lugar.

O que Baumann identifica como hegemônico, na virada do século XX para o XXI, é o procedimento que pode ser descrito pela metáfora do caçador. “A única tarefa que os caçadores buscam é outra ‘matança’, suficientemente grande para encherem totalmente suas bolsas. Com toda certeza, eles não consideram seu dever assegurar que o suprimento de animais que habitam a floresta seja recomposto depois (e apesar) de sua caçada.” (...) “Agora somos todos caçadores, ou chamados de caçadores e compelidos a agir como tal, sob pena de sermos expulsos da caçada, ou (nem pensar nisso) relegados às fileiras da caça. E o quanto quer que olhemos em volta, provavelmente veremos outros caçadores solitários como nós, ou caçadores caçando em grupos da maneira como nós mesmos também tentamos.”

A reflexão de Baumann se encaminha para reafirmar algo que é recorrente em sua obra. O diagnóstico de que, cada vez mais, temos dificuldades de nos pensarmos como coletividade. Todos exigem de nós que demos soluções individuais para problemas gerados coletivamente, e nosso valor é medido por nosso sucesso em dar essas soluções. Acontece que, pelo próprio teor do sistema, só uma minoria pode dar essas respostas.

Baumann é um sociólogo com muita proximidade à filosofia, como ele mesmo já afirmou. Recentemente, um texto infeliz de uma fonte de onde somente se pode esperar coisas como esta, duvidava da importância de se estudar sociologia e filosofia no ensino médio (imagino que o raciocínio também se estenda à história, geografia e literatura). O articulista dizia que precisamos de mais engenheiros e menos estudiosos de ciências sociais e humanidades. Veja-se que, quem estuda humanidades, periga acabar analisando o mundo como Baumann. E talvez espalhem essas idéias. E se juntem nas esquinas aos protestos que espalham pelo mundo real e virtual. Onde vai dar isso tudo, ninguém sabe, mas é bom pensar que palavras e ações contra-hegemônicas estão ocorrendo e se difundindo. Quem não gosta de críticas à forma como as coisas estão postas, acaba celebrando o comportamento do caçador, e deve arrepiar os braços de emoção vendo-o enunciado de modo tão explícito e sem rodeios como neste vídeo:


Agradeço a meus alunos de História Contemporânea I, Vinicius Motta e Vitor da Cruz por me apresentarem esse video

"Tempos Líquidos" foi publicado no Brasil pela Jorge Zahar e é bem baratinho.

sábado, 1 de outubro de 2011

O vaqueano do Quaraí



A imagem busquei aqui  http://rsemfoco.blogspot.com/2011/02/mitos-e-lendas-do-sul-negrinho-do.html



O que eu sei do mulato Adão? Quase nada. Umas poucas informações encontradas nas folhas amarelas de um antigo processo criminal, em uma tarde cinzenta de pesquisa no arquivo.

Foi um alvoroço: chegou até o delegado de polícia de Alegrete uma denúncia de que se estavam seduzindo alguns escravos, ali e no município vizinho, para que fugissem para o Estado Oriental, com chamavam o Uruguai naqueles tempos. Era outubro de 1850. O acusado era Paulino, qualificado pelo delegado como sendo um “soldado desertor”. A denúncia fora feita por Maneco Meu Deus, capataz de estância. Maneco descobrira que os escravos do seu senhor tinham sido convidados para fugir. Escrevera, então, um bilhete a outro senhor, dando conta que seu escravo, o mulato Adão, também havia entrado no convite. Além dele, teriam sido convidados cativos de mais três senhores.

 Os convites teriam sido feitos por Paulino. Em seu depoimento, o senhor do mulato Adão contou que recebera o bilhete com o aviso e interrogara seu escravo. Adão dissera que, de fato, recebera o convite, mas que não tinha aceitado. Ao que o senhor disse ter “castigado, correcionalmente”, o escravo.

Até aí, temos uma história sobre um homem livre, provavelmente desertor que, sabe-se lá por quais motivos, teria tentado organizar uma fuga de escravos para o Uruguai. Acontece que novas testemunhas declararam que, na verdade, a fuga estava sendo orquestrada, em conjunto, pelo “desertor” Paulino, por um escravo de nome Manoel e pelo próprio mulato Adão. Manoel e Adão foram acareados e acusaram-se mutuamente. Depois, descobre-se que Paulino havia trabalhado como peão, em algumas das estâncias cujos escravos estavam envolvidos na fuga. Pode ter funcionado como um elo de ligação, um comunicador. Entenda-se bem, os escravos não viviam em campos de concentração. Deslocavam-se, alguns viajavam e trabalhavam por certos períodos longe de seus senhores. Escravos de senhores diferentes visitavam-se, como comprova o fato de que muitos eram compadres. Mas uma fuga assim, envolvendo cativos de quatro estâncias diferentes, separadas por dezenas, talvez por mais de uma centena de quilômetros, exigia um pouco mais de logística.

Em seu depoimento, o preto Manoel declarou que Adão organizara a fuga gabando-se de ser “vaqueano do Quaraí”, ou seja, afirmando conhecer os caminhos e rotas de escape através do rio que fazia a divisa entre os dois países. Investigando um pouco mais, soube-se que Adão tinha um histórico de fuga. Foi perguntado se era verdade que já havia fugido uma vez para o “Outro Lado”. Sim, isso era verdade, contou o escravo. Porém, arrependera-se, pois o Uruguai encontrava-se em guerra. Chegando no Salto (cidade uruguaia),  “agarraram-no para ser soldado”. E, como ele era “inimigo de ser soldado”, desertara do exército e voltara a apresentar-se a seu senhor. Diz ter conseguido, deste, a promessa de ser vendido. Esse fato conta a favor da hipótese de que Adão tenha mesmo sido um dos organizadores da fuga, tanto mais quando sabemos que alguns dos convidados eram escravos de um Coronel da Guarda Nacional, e que haviam prometido roubar as armas que seu senhor tinha no paiol. Adão sabia que era perigoso ir para o Outro Lado sozinho e desarmado.

Durante muito tempo, os historiadores acharam difícil que a escravidão fosse importante nas estâncias do Rio Grande do Sul. Um dos argumentos era justamente o custo da vigilância sobre escravos que trabalhavam a cavalo, em um mundo sem cercas, próximos à fronteira com países onde a escravidão não existia mais. Hoje, isso caiu por terra, a história da escravidão avançou e se sabe que as formas de manutenção dessas relações não eram apenas a vigilância e a coerção, embora elas também estivessem presentes. Entre muitas outras coisas, o caso do mulato Adão mostra como cruzar a fronteira era algo difícil e que não garantia, automaticamente, uma situação muito melhor do que a vida da qual se fugia. 

Seja como for, eu fiquei a imaginar o mulato Adão, com seus planos novamente frustrados, pensando nas consequências daquilo. Se iria lhe render uma nova surra. Ou, talvez, se seu senhor, convencido de que ele não tinha mesmo arrumação, agora realmente daria jeito de vendê-lo. Seria uma vitória. Ou, quem sabe, enquanto saía da casa do delegado e era levado de volta à estância, antes que ficasse de novo conversador e bem disposto, talvez tenha olhado para o sul e refeito mentalmente, metódico e convicto, o mapa das quebradas do Quaraí.

sábado, 17 de setembro de 2011

E não há horizonte que chegue

Porque entardece e é sábado e chove levemente. Porque a tarde se esvai em cinza, mas não é que seja triste. Porque, para essas horas, é que se inventou o horizonte no sul, para olhar mateando. Porque me assombro vagarosamente e deixo o tempo chegar em mim. Porque não conhecia esta música e ela me abriu uma planície na alma e me trouxe tudo isso.


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Just in time

Eu iria fazer 19 e ela era um ano mais nova. Nós éramos amigos e, não sei bem porque, a gente foi se aproximando. Andávamos juntos pela cidade, ouvíamos música, procurávamos abismos para ver o sol se pôr. Eu andava à deriva e ela implicava com a leviandade dos meus fins de semana. Ela andava interessada por um cara, nem lembro direito, um baixinho. Ela, linda daquele jeito, era muita coisa para ele. Contávamos quase tudo um para o outro. Falávamos dos nossos planos e o pessoal estranhava uma amizade assim entre um garoto e uma garota. Até que a presença dela passou a ir comigo a todos os lugares, mesmo quando a gente estava longe. Eu achei que aquilo iria ser muito complicado. Então decidi largar mão de ser besta e manter a amizade. Sábia decisão. Mas quem disse que eu mando em mim? Nós conversávamos, em uma noite morna, sob um céu estrelado, quando eu comecei a falar que nem um louco, e disse tudo. Nem sei qual dos dois ficou mais assustado. Faz exatamente vinte anos hoje. Se deu certo... bom... é só olhar para a minha cara na foto aí embaixo e deduzir.



domingo, 4 de setembro de 2011

A Legalidade, meus brinquedos e um punhado de batatas fritas


Congressos acadêmicos são comuns na vida dos historiadores. Assim, não havia nenhum assombro em acordar bem cedo, juntar as coisas e entrar em um carro com mais três colegas, 300 quilômetros rumo ao sul, para um evento na Universidade Federal de Pelotas. Durante o dia, tudo dentro do previsto: comprei doces depois do almoço e a tarde transcorreu com uma mesa-redonda em que estive acompanhado por outros dois pesquisadores.

Porém, à noite, eu faria uma das conferências, cujo tema, muito acadêmico, eram as pesquisas de história social sobre o sul do Brasil no século XIX. Acontece que, na mesma seção, falaria sobre o Movimento da Legalidade não um pesquisador, mas Sereno Chaise, ex-governador do estado e que era deputado ao tempo do movimento. Não são poucos os textos que trazem reflexões sobre a diferença de posição dos protagonistas da história e dos estudiosos que não viveram aqueles tempos. Em ambos os casos, há vantagens e problemas na hora de analisar um processo histórico, mas não há dúvida que os discursos, as explicações e as narrativas produzidas serão feitas de matéria distinta. Para minha sorte, eu não iria falar sobre a Legalidade e sim sobre gente que já havia morrido há mais de 100 anos e que nem eu, nem meu companheiro de mesa, havíamos conhecido. Porém, para mim, a experiência era impar.

Se alguém ainda não sabe, o Movimento da Legalidade foi deflagrado em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros. O vice-presidente, João Goulart (PTB), estava em missão na China. Os ministros militares comunicaram que ele não poderia assumir e que, se o tentasse, seria preso ao desembarcar em solo brasileiro. Leonel Brizola,  governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Goulart, organizou a resistência da Legalidade, requisitou a aparelhagem da rádio Guaíba e entrincheirou-se na sede do governo estadual, o palácio Piratini, em Porto Alegre, junto com correligionários e protegido pela Brigada Militar do RS. Na praça da matriz, em frente ao palácio, milhares de pessoas faziam vigília em apoio ao movimento. No lance mais espetacular, a base aérea de Canoas (RS) recebeu ordem para bombardear o palácio Piratini, dando início a uma guerra civil. Porém, os oficiais aviadores não conseguiram decolar porque os sub-oficiais e sargentos sabotaram os aviões e protagonizaram uma insurreição. O movimento ganhou força quando o comando do 3º. Exército, sediado no sul, aderiu a ele. Quando o presidente João Goulart chegou a Porto Alegre, anunciou sua decisão de aceitar uma solução conciliatória, um parlamentarismo que lhe retirava o poder efetivo. A multidão na praça frustrou-se e há quem diga que Brizola e Jango brigaram feio. De qualquer modo, foi um dos momentos marcantes da história da democracia brasileira.

Pois Sereno Chaise era deputado estadual e, possivelmente, o amigo mais próximo de Brizola, estando sempre ao lado dele naqueles tempos. Eu não tenho qualquer simpatia por políticos. Tendo sempre a desconfiar deles. E também não concordo com a antiga corrente historiográfica que via nos fatos e personagens políticos o único objeto de interesse da História. Porém, após quase duas horas ao lado de Sereno, ouvindo-o falar e responder perguntas, chegou a minha vez. Eu deveria expor minhas reflexões sobre o longínquo século XIX. Confesso que me senti como um menino que fora convidado a falar a todos sobre seus brinquedos. Até acho que não cometi nenhum disparate, porque o público ficou até o fim. A verdade é que gostei de ouvir aquele homem dizer, aos 83 anos de uma vida cheia, que tivera muitas dúvidas e que ainda as tinha. Ele dissera que não conseguia julgar as decisões tomadas por Brizola, por Jango. Quem sabe o que vem depois? Afinal, ninguém pode prever o futuro. Mas é preciso posicionar-se.  Ali estava algo que ficou no fundo do meu pensamento mesmo depois da fala. Desejei muito que alguns historiadores, cientistas sociais e militantes políticos ouvissem aquilo. Desmontaria muito do mecanicismo e teleologia em algumas formas de ver a História. Eu quero distância de governantes e historiadores que não tenham dúvidas.

Tudo isso seguiu comigo mesmo depois, quando fui jantar com colegas e encontrar amigos e rir a valer. No outro dia, voltamos viajando de carro pelas vastidões dos campos da serra do sudeste, mateando e conversando fiado. Por insistência aventureira do meu compadre José Iran, deixamos a estrada e nos metemos em Santana da Boa Vista, que faz jus ao nome. Comemos uma a la minuta. Estava com muita fome, então meu julgamento está comprometido, mas gostei de comer batatas fritas com gosto verdadeiro, sem essa padronização horrorosa que deixa qualquer petisco de boteco com gosto de Mac Donalds. Recomendo. Fica em frente à praça, em diagonal com o clube.




domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos Pais

O Miguel acordou às oito, pedindo o mamá. Chovia estrondosamente. Foi demorado fazer sozinho todos os procedimentos de um despertar e preparar para viagem. Coisas que, normalmente, fazemos em dois, mas hoje a mãe dele está em São Paulo, lançando um livro em que é co-autora. Enrolei-me um tanto, ainda mais eu, que costumo ter dificuldade mesmo de arrumar somente a mim.

Miguel adora viajar. Foi cantando no carro, até adormecer. Fomos ver minha mãe e meus avós e visitar a memória do meu pai, na cidade que ele adorava e onde pediu para ser enterrado. Quando chegamos à ponte da entrada, vi que o rio estava caudaloso e barrento, como fica nos invernos de muita chuva. Diferente dos tempos secos de verão, quando ele é manso e limpo. Até hoje, lembro do cheiro do rio quando eu era guri. E do tato da água na pele. E lembro das margens onde corre uma estrada fechada por árvores. Nessa estrada, meu pai e eu caminhávamos nos domingos pela manhã, para ir pescar.

Meu pai era inteligente e irônico. Às vezes, era debochado mesmo. Certa ocasião, numa reunião de pais e mestres, na escola onde era professor, ouviu uma senhora doutrinar: “O problema dos jovens, em seus namoros, é que só querem saber da hora da cama! E a cama não é o mais importante em um relacionamento.” Ao que meu pai pediu a palavra e disse: “Apoiada! Concordo inteiramente!” Ela, cheia de autoridade: “Viram, o Luís Antônio também acha que o sexo não é o mais importante em um relacionamento!” e meu pai: “Espera, Fulana, tu disseste a cama. Daí eu concordo, a cama não é o mais importante!”

Conforme a doença avançou e foi lhe tirando os movimentos e, muito depois, a autonomia e a consciência íntegra, lembro dele ir misturando o humor com uma funda melancolia. E também foi desgostando do futebol. Ele que, na minha infância, vivia verdadeiramente os campeonatos. Lembro que, em 79, houve uma semifinal, Inter x Palmeiras. Lembro de um gol do Falcão, colocando o pé na sola do palmeirense Mococa. Lembro de meu pai me rodar no ar. Eu, com seis anos, achei que estava voando.

Hoje, quando a chuva deu uma trégua, aproveitando o pátio e a casa grande, o Miguel correu sem parar, gritando inteiro, feliz que só ele. Pisoteou o gramado, derrubou umas quantas flores e aterrorizou cães, gatos e galinhas. Encheu os olhos do meu avô quase centenário. Foi então que eu pensei no meu pai. E imaginei que, algum dia, eu devo ter corrido, daquele mesmo jeito, naquele mesmo quintal. E que, talvez, ele tenha me visto como hoje eu vi o Miguel. E que, provavelmente, sentiu o que eu senti. E a minha saudade ficou sem fim.



O mencionado gol do Falcão está entre 0:57 e 1:05 min do vídeo

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

No Coração do Império




Quando penso nas convulsões na Inglaterra, é inevitável lembrar dos pensamentos do personagem de “O Coração das Trevas”, enquanto descia o rio, partindo do coração do Império, cuja luz a todos cegava, para o mundo da “escuridão”. Há muitos universos nessas palavras:

E nada é realmente mais fácil para um homem que tem, como diz o ditado, ‘seguido o mar’, com reverência e afeição, do que evocar o grande espírito do passado nos trechos mais baixos do Tâmisa. O fluxo da maré corre para cá e para lá num trabalho incessante, repleto de memórias de homens e navios que conduziu ao lar e a batalhas no mar. Conheceu e serviu a todos os homens de quem a nação se orgulha, de Sir Francis Drake a Sir John Franklin, todos fidalgos – com ou sem títulos – os grandes cavaleiros andantes do mar. Deu origem a todos os navios cujos nomes são como jóias brilhando na noite do tempo, desde Golden Hind, voltando com seus largos costados cheios de tesouros, para ser visitado por Sua Alteza, a Rainha, e desaparecer, depois, nos desvãos da História, até o Erebus e o Terror, destinados a outras conquistas, e que jamais retornaram. Conheceu os navios e os homens. Partiram de Deptford, de Greenwich, de Erith – os aventureiros e os colonos; navios de reis e navios de homens de negócios; capitães, almirantes, os tenebrosos ‘atravessadores’ do comércio com o Oriente, e os ‘generais’ comissionados das frotas das Índias Orientais. Em busca de ouro ou fama, todos partiram por aquele rio, segurando a espada, e frequentemente a tocha, mensageiros dos poderosos, levando uma centelha do fogo sagrado. Que grandezas não navegaram suas correntezas até o mistério de uma terra desconhecida!... Os sonhos dos homens, semente de nações, germe de Impérios.”

O Coração das Trevas
De Joseph Conrad. Tradução de Albino Poli Jr.

sábado, 6 de agosto de 2011

Dia de Festa

Acontece que eu moro em uma rua calma, coberta de paralelepípedos, onde os únicos edifícios são o meu e o que fica logo em frente. Em todo o restante da longa ladeira que ela forma, há casas antigas, a maioria delas habitadas por casais de idosos, descendentes de italianos. Coisa típica deste bairro. Escuto galos cantarem às 5 da manhã, há latido de cães a noite inteira e um vizinho estúpido queima lixo no quintal. Lembra minha infância em Jaguari. Nos domingos pela manhã, meus vizinhos sobem a rampa bem cedo para ir à missa. Eles conversam entre si e nos olham como forasteiros. Morando aqui há quatro anos, já identifico muitos deles. Lembro que, no verão passado, fazia um calor desumano, quando se aproximou uma tempestade. Eu feliz da vida, porque iria chover e aliviar aquele calor danado. Então, vi um deles envergar um cartão com a imagem de uma santa e fazer movimentos com os braços em direção ao temporal, murmurando uma oração ou encantamento ou feitiço. E não é que as nuvens passaram reto e não choveu! Filho da mãe!

Nesta rua, há uma casa cor-de-rosa com as janelas vermelhas, onde mora um casal bem velhinho. Volta e meia chegam três, cinco, sete carros. Desce gente de todas as idades, muitas delas com bebidas e pratos nas mãos, e se vão aos fundos da casa. E há música e dança até a madrugada. No Natal, no Ano Novo, até no carnaval. Porém, no ano passado, por mais de uma vez acompanhei uma ambulância chegar até a casa. Depois de um tempo, vi que o ancião que morava ali começara a sair em uma cadeira de rodas, para tomar sol. Fazia meses que não o via. Hoje, notei que a frente da casa estava ornamentada com balões coloridos. Então, vi o velhinho apoiado em duas bengalas, muito frágil, comandando os lugares para onde iriam as bebidas que iam chegando.

Não consigo descrever a minha alegria.