sexta-feira, 6 de abril de 2012

Photographias


As fotografias produzidas no século XIX me causam maravilha.

Eu estudo aquela gente. Aqueles lugares.

É conhecida e mil vezes repetida a sentença, devida a Marc Bloch, de que os historiadores devem ser como o ogro do imaginário medieval. Devem farejar a carne humana e andar onde ela estiver. Pessoas, é disso que trata a História. Está aí uma daquelas ideias tão simples e tão adequadas, que se deveria ter na frente da mesa de trabalho, colado no mural, tatuado no braço. Eu sei bem disso, não pensem que não.

Porém, apesar desse impulso e desse esforço consciente por reconstruir humanidades, basta olhar uma dessas fotos e fica clara a impressão de que a torrente de modelos analíticos, ideias, relações, escolhas narrativas, tudo isso acaba proporcionando, no máximo, imagens muito esquemáticas daquela gente.

Essa percepção me esbofeteia a cara quando olho para as figuras, os olhares, o corpo das pessoas naquelas fotos.

Olhem para esses dois sujeitos, no fundo desses retratos esmaecidos, encontrados junto a um processo criminal do final do século XIX. Eles foram acusados de um homicídio na fronteira do Brasil com a Argentina, em 1884.

Seraphim Cesário e Silva, 30 anos, solteiro, natural de Alegrete. No interrogatório, disse ser pedreiro, porém vivia de trabalhos eventuais.



Miguel Verdum, 21 anos, natural do Uruguai e também vivia de trabalhos não especializados.



Eu sei, os retratos são, eles também, muito artificiais. E se poderia dizer mil palavras analisando suas roupas, sua postura, os grilhões que lhes prendem os pés. Não farei isso aqui. Uma análise dessas imagens e da gente que transitava naquela fronteira, vocês encontram na tese de doutorado de Mariana Thompson Flores, que me cedeu gentilmente essas fotos e de cuja obra tirei a ideia para este post. Como apontou Mariana, "suas imagens, sentados com os pés presos por grilhões, devem representar que aspecto deviam ter esses inúmeros indivíduos que transitavam entre fronteiras geográficas e viviam entre o lícito e o ilícito." 

Aqui, porém, eu queria apenas declarar esse fascínio que me é inevitável. Creio que seja diferente para historiadores que estudam o século XX, familiarizados com os sujeitos e a época que estudam através de  um sem número de fotografias. Já, para os estudiosos do século XVIII ou épocas anteriores, essa percepção através da foto é impossível. Assim, só os historiadores que dedicam seu trabalho ao Oitocentos  talvez possam me entender. As fotografias existem. Mas elas trazem junto uma sensação que tem o poder de desnaturalizar.

Trata-se da experiência de render-se à imagem como um instrumento de comunicação com um outro mundo. 

E eu me assombro.



Parte desse post foi inspirado em comentário feito ao excelente post do Charlles Campos sobre as fotografias de Eugène Atget

3 comentários:

  1. Não adianta: o passado está de tal forma perdido que o máximo que podemos atingir dele são pistas fragmentadas, como estas fotografias que acabaste de mostrar. Sob um certo aspecto, o historiador e um detetive muito desajeitado...

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    1. Essa é a minha impressão também, Cássio. Um detetive desajeitado. Meio Quixote, mas a gente se aventura...

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  2. O teu espanto/fascínio, Farinatti, é a surpresa descrita por Roland Barthes ao ver uma foto do irmão mais novo de Napoleão: "Vejos os olhos que viram o imperador". Talvez o que te fascine não seja somente a imagem, mas aquilo que esses sujeitos presenciaram e com muito custo tentamos remontar.

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