As fotografias produzidas no
século XIX me causam maravilha.
Eu estudo aquela gente. Aqueles
lugares.
É conhecida e mil vezes repetida
a sentença, devida a Marc Bloch, de que os historiadores devem ser como o ogro
do imaginário medieval. Devem farejar a carne humana e andar onde ela estiver.
Pessoas, é disso que trata a História. Está aí uma daquelas ideias tão simples e
tão adequadas, que se deveria ter na frente da mesa de trabalho, colado no mural,
tatuado no braço. Eu sei bem disso, não pensem que não.
Porém, apesar desse impulso e
desse esforço consciente por reconstruir humanidades, basta olhar uma dessas
fotos e fica clara a impressão de que a torrente de modelos analíticos, ideias,
relações, escolhas narrativas, tudo isso acaba proporcionando, no máximo, imagens
muito esquemáticas daquela gente.
Essa percepção me esbofeteia a
cara quando olho para as figuras, os olhares, o corpo das pessoas naquelas
fotos.
Olhem para esses dois sujeitos, no fundo desses retratos esmaecidos, encontrados junto a um processo criminal do final do século XIX. Eles foram acusados de um homicídio na fronteira do Brasil com a Argentina, em 1884.
Seraphim Cesário e Silva, 30
anos, solteiro, natural de Alegrete. No interrogatório, disse ser pedreiro,
porém vivia de trabalhos eventuais.
Miguel Verdum, 21 anos, natural
do Uruguai e também vivia de trabalhos não especializados.
Eu sei, os retratos são, eles
também, muito artificiais. E se poderia dizer mil palavras analisando suas
roupas, sua postura, os grilhões que lhes prendem os pés. Não farei isso aqui.
Uma análise dessas imagens e da gente que transitava naquela fronteira, vocês
encontram na tese de doutorado de Mariana Thompson Flores, que me cedeu
gentilmente essas fotos e de cuja obra tirei a ideia para este post. Como apontou Mariana, "suas imagens, sentados com os pés presos por grilhões, devem representar que aspecto deviam ter esses inúmeros indivíduos que transitavam entre fronteiras geográficas e viviam entre o lícito e o ilícito."
Aqui, porém, eu queria apenas declarar esse fascínio que me é inevitável. Creio que seja diferente para historiadores que estudam o século XX, familiarizados com os sujeitos e a época que estudam através de um sem número de fotografias. Já, para os estudiosos do século XVIII ou épocas anteriores, essa percepção através da foto é impossível. Assim, só os historiadores que dedicam seu trabalho ao Oitocentos talvez possam me entender. As fotografias existem. Mas elas trazem junto uma sensação que tem o poder de desnaturalizar.
Trata-se da experiência de render-se à imagem como um
instrumento de comunicação com um outro mundo.
E eu me assombro.
Parte desse post foi inspirado em comentário feito ao excelente post do Charlles Campos sobre as fotografias de Eugène Atget
Não adianta: o passado está de tal forma perdido que o máximo que podemos atingir dele são pistas fragmentadas, como estas fotografias que acabaste de mostrar. Sob um certo aspecto, o historiador e um detetive muito desajeitado...
ResponderExcluirEssa é a minha impressão também, Cássio. Um detetive desajeitado. Meio Quixote, mas a gente se aventura...
ExcluirO teu espanto/fascínio, Farinatti, é a surpresa descrita por Roland Barthes ao ver uma foto do irmão mais novo de Napoleão: "Vejos os olhos que viram o imperador". Talvez o que te fascine não seja somente a imagem, mas aquilo que esses sujeitos presenciaram e com muito custo tentamos remontar.
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