quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Era da Incerteza: de que lado estamos

Em seu Tempos Líquidos (um livrinho bem maior por dentro do que por fora), o sociólogo polonês Zygmunt Baumann faz uma condensação de muitas das idéias que expôs em obras anteriores. Creio não ser errado dizer que o livro é uma síntese delas. Confesso que meu gosto pelo livro foi aumentando conforme o lia e chegou ao ápice no último capítulo. Ali, o velho pensador faz uma avaliação quase poética sobre a utopia.

Zygmunt Baumann

A visão medieval e tradicional do homem como um guarda-caça, que deve zelar pelo mundo deixando-o como Deus criou, teria sido sucedida, no período moderno, pela utopia do jardineiro. Os homens acreditaram poder substituir um suposto criador e, eles mesmos, recriarem o mundo. Não mais a natureza com sua ferocidade e imperfeição, não mais a floresta, mas sim o jardim planejado, simétrico, inequívoco. Fruto da arte do homem. Hoje, temos a ruína da utopia do jardineiro, gerada, entre outros motivos, pela frustração derivada do fato dela não ter trazido a perfeição que prometia. E, também, do perigo autoritário devido à essa busca de perfeição. Porém, não se colocou algo necessariamente melhor no lugar.

O que Baumann identifica como hegemônico, na virada do século XX para o XXI, é o procedimento que pode ser descrito pela metáfora do caçador. “A única tarefa que os caçadores buscam é outra ‘matança’, suficientemente grande para encherem totalmente suas bolsas. Com toda certeza, eles não consideram seu dever assegurar que o suprimento de animais que habitam a floresta seja recomposto depois (e apesar) de sua caçada.” (...) “Agora somos todos caçadores, ou chamados de caçadores e compelidos a agir como tal, sob pena de sermos expulsos da caçada, ou (nem pensar nisso) relegados às fileiras da caça. E o quanto quer que olhemos em volta, provavelmente veremos outros caçadores solitários como nós, ou caçadores caçando em grupos da maneira como nós mesmos também tentamos.”

A reflexão de Baumann se encaminha para reafirmar algo que é recorrente em sua obra. O diagnóstico de que, cada vez mais, temos dificuldades de nos pensarmos como coletividade. Todos exigem de nós que demos soluções individuais para problemas gerados coletivamente, e nosso valor é medido por nosso sucesso em dar essas soluções. Acontece que, pelo próprio teor do sistema, só uma minoria pode dar essas respostas.

Baumann é um sociólogo com muita proximidade à filosofia, como ele mesmo já afirmou. Recentemente, um texto infeliz de uma fonte de onde somente se pode esperar coisas como esta, duvidava da importância de se estudar sociologia e filosofia no ensino médio (imagino que o raciocínio também se estenda à história, geografia e literatura). O articulista dizia que precisamos de mais engenheiros e menos estudiosos de ciências sociais e humanidades. Veja-se que, quem estuda humanidades, periga acabar analisando o mundo como Baumann. E talvez espalhem essas idéias. E se juntem nas esquinas aos protestos que espalham pelo mundo real e virtual. Onde vai dar isso tudo, ninguém sabe, mas é bom pensar que palavras e ações contra-hegemônicas estão ocorrendo e se difundindo. Quem não gosta de críticas à forma como as coisas estão postas, acaba celebrando o comportamento do caçador, e deve arrepiar os braços de emoção vendo-o enunciado de modo tão explícito e sem rodeios como neste vídeo:


Agradeço a meus alunos de História Contemporânea I, Vinicius Motta e Vitor da Cruz por me apresentarem esse video

"Tempos Líquidos" foi publicado no Brasil pela Jorge Zahar e é bem baratinho.

11 comentários:

  1. Me arrepiei com o video. Coisas que a gente considera uma indecência, uma vergonha de se dizer ou pensar, o sujeito fala com essa naturalidade. Às vezes a gente lê Bauman e acha que ele está sendo exagerado, mas está tudo aí.

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  2. É... a gente sabe que esse é o raciocínio, mas vê-lo enunciado assim, tão naturalmente, espanta (e que bom que espanta).
    Valeu pelo RT

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  3. Rapaz, mas que vídeo! E o mais assustador nele é, justamente, não ser surpreendente. Há uma lei nos EUA que pune rigorosamente qualquer empresa que tenha agido, propositalmente ou não, afim de não ganhar dinheiro, ou não o fazer na proporção máxima. Li isso no Colapso, do Jared Diamond.

    Ótima colocação em seu texto, sobre a teoria do jardineiro e, sobretudo, sobre a obsolescência a que querem dar à sociologia e às outras matérias da área das humanas.

    Queria dizer ainda que é uma obrigação sua e da Nikelen, que tem a oportunidade de formarem opinião no meio acadêmico, de fazer chegar autores como Bauman, Zizék, Diamond, etc, a seus alunos. Pode parecer óbvio para nós o conhecimento desses autores pelo meio universitário. Mas vocês devem saber melhor que eu que, infelizmente, há uma tendência à leitura tecnicista nas universidades. Saber apenas o que conta nos manuais.

    Abraço.

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  4. Eu tendo a ter meus problemas com o Baumann, mas concordo com ele nesse ponto específico. E o vídeo é assustador - e ao mesmo tempo esclarecedor.

    Só essa analogia do homem como guarda-caça é bem não-medieval - é só dar uma olhada em Agostinho e no que dele foi retomado por Tomás de Aquino. O mundo é do homem, e ele deve desfrutar dele o máximo possível; nesse sentido ele seria o rei das bestas, o predador.

    Chatice do medievalista :P

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  5. Adoro essa reflexão de Baumann sobre o Jardineiro.

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  6. Se o cara da entrevista diz pra agir, vou agir: vou dar um soco na cara dele. Morte aos caçadores!

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  7. Charlles
    Baumann já está nas minhas aulas. Zizék eu preciso conhecer mais sistematicamente, por enquanto, ainda sou bem ignorante nele para além dos videos que rolam na net e algum texto curto. Sei que gostas muito do Diamond. Quando li, achei algumas partes boas, mas discordei de outras. Tua opinião me estimula a voltar a ele.

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  8. Fernando
    quando o assunto é o mundo medieval, a chatice de medievalista é muito bem-vinda, ora pitangas!

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  9. João
    Eu também gosto. Aliás, o livro inteiro é muito bom, esse último capítulo é belo e o final é o melhor de tudo.

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  10. Vitor
    Dá vontade de enforcar ele na gravata...

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  11. O que me consola é que eles, os caçadores, acabam se enforcando com as próprias gravatas. A propósito, sempre gostei mais dos pescadores, que têm a paciência de esperar e sabem que não há nada melhor que um dia depois do outro.

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