segunda-feira, 2 de abril de 2012

Pais e filhos


Meu avô paterno era um homem sério. E antiquíssimo. Nasceu em 1902 e viveu quase um século. Era duro com os filhos. Há uma lenda familiar que atribui a ele uma regra disciplinar para Salomão nenhum botar defeito: um filho aprontava, todos os sete apanhavam. Assim, uns impediam os outros de fazer estrepolias. Era um tempo em que carinho físico entre pai e filho não se praticava. Ao menos não era o normal. Carinho era dar exemplo de trabalho, honestidade. Carinho era levantar todos os dias antes do sol nascer, para botar comida na mesa. Pensando assim, não deixa de ter alguma lógica. Mas qualquer gesto explícito de afeto entre pai e filho era desaconselhável, porque sinalizava fraqueza. E a formação dos homens não admitia isso. Talvez uma das grandes conquistas dos últimos 40 anos seja, exatamente, a superação desses valores. Não vivi aquele tempo, mas tenho a nítida impressão de que é muito melhor ser homem agora. Neste e em outros sentidos, a luta pela igualdade entre os sexos é libertadora também para os homens.

Meu pai entendia o velho dele. Mesmo com a doença dificultando seus movimentos, o pai seguia pegando o ônibus de Santa Maria para Jaguari, mais de duas horas de viagem, para passar três dias por semana com o vô. A terapia para as frustrações da infância, como sempre no caso do meu pai, vinha disfarçada em humor. Ele contava que, certa feita, tinha sete anos e meu avô era candidato a prefeito. Foram para o interior do município e lá se formou uma fila de crianças que iam chegando ao meu avô, que lhes abraçava e beijava. Meu pai viu a oportunidade e nem pensou duas vezes. Entrou na fila também. Quando chegou a sua vez, o vô o abraçou. Porém, notando de quem se tratava, soltou-o rapidamente, quase jogando-o no chão e reclamou, brusco: “ahh não guri... é tu...”.

***

Então os últimos dias trouxeram o fim do calorão o que é sempre bom e o outono aqui tem uma luz que acaricia a gente. Mesmo assim, foi um acúmulo de incômodos e contratempos, uns bens recentes, outros tão antigos que não consigo precisar quando iniciaram. Adoro meu trabalho, mas esta é uma época de afazeres burocráticos, com prazos a cumprir, o que me tira do sério, e também outros dramas inúteis a resolver. Ou para serenar o que não se pode resolver (porque depende da loucura dos outros e não da minha). Mas é difícil serenar quando se está na Roda Viva, então tudo vai ficando mais demorado do que devia. E hoje à noite só eu e o Miguel em casa, porque a mãe dele está viajando a trabalho e brinquei bastante com ele, depois o coloquei na cama. E ele pediu para eu deitar com ele enquanto via um filminho. Ele então rolou para todos os lados e me chutou e amassou o quanto pôde e até cantar cantou. Eu todo torto e já meio brabo de estar conseguindo um torcicolo e ter que acordar cedo amanhã. Depois de tanta agitação, ele foi acalmando até que, quase dormindo, me olhou bem faceiro e disse, sem motivo ou provocação, do alto dos seus três anos, feitos ontem, “Pai... eu te amo...” E me abraçou como nem sei explicar e nem quero saber do que carrego de ontem, nem quero saber de amanhã, nem nada que não seja o fato de que, hoje, a noite voa leve e serena, como um balão cruzando o céu.


9 comentários:

  1. "a luta pela igualdade entre os sexos é libertadora também para os homens." Ótimo!

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    1. Pois é... tenho calafrios só de pensar em me juntar com uma mulher que acha que é só minha a responsabilidade de sustentar a casa, os filhos e a ELA. O patriarcado trazia essa ideia.

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  2. Emocionantemente lindo! Vocês três são uma benção, para quem tem a felicidade de os conhecer. E esse príncipe é a cereja do bolo! Um "eu te amo" desses cura qualquer cansaço e enche de alegria qualquer coração, não é mesmo?

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  3. Lindo texto, amigo. Sei o que vc sentiu pq isso não tem preçon ou um pagamento imaginável. Compartilhei.

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  4. Bah, cara, que coisa bonita! Já gostava dos teus textos sobre família, mas este, com meu filho tendo completado uma semana ontem, bateu forte. Parabéns!

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  5. A natureza também tem regras disciplinares duras, como a do teu avô. Ser pai nos força a encarar de novo tudo aquilo que os nossos pais nos mostraram enquanto andavam por aqui. Ouvimos eles, mas com a nossa voz. A natureza não perdoa: ao mesmo tempo que nos dá filhos maravilhosos, nos devolve os nossos pais.

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