sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Bem-vindo Adriano!





Seja bem-vindo, Adriano! Meu segundo sobrinho. Ô família para fazer homem essa, seu! Te desejo toda a alegria que cabe nesta vida!

Terás grandes mestres no teu primo e no teu irmão. O Ângelo poderá te ensinar como chegar nas garotas delicada mas decididamente. Quando tinha três anos, na praia, andava em volta de uma castelhaninha perguntado para ela "Oi, sou o Ângelo. O que é o seu nome?" Ou, então, escolher o método do Miguel, bem mais incisivo. Com pouco mais de um ano, ofereceu uma flor a uma menina da mesma idade. Quando viu que ela aceitou, imediatamente, agarrou e lambeu o rostinho dela. Quase apanhei do pai da guria. Enfim, são estratégias diversas que estão à tua disposição, para empregares na criação das tuas próprias.

Com teu avô, poderás aprender a assar os melhores churrascos, além da incrível arte de enfiar 842 gomos de bergamota na boca, enquanto conta uma longa história e, depois, cuspir calmamente todas as sementes. Uma por uma. São 20 anos de convivência, e ainda me impressiono. 

Tua tia vai te encher de livros e de histórias. Tua vó faz o melhor mocotó do mundo e uma torta de mandioca que vou te ensinar a pedir a ela, em vezes que eu estiver junto. 

Com teu pai, poderás aprender coisas muito úteis: desde a grande sabedoria dos computadores, da marcenaria, da engenharia até a arte de dormir sentado e com os olhos abertos, em meio a 10 pessoas que conversam animadamente. Tua mãe saberá, como ninguém, te ensinar a lidar com as crianças e com os animais, te fará os melhores pães do universo (me convide, quando isso acontecer) mas, não posso te iludir, estás arriscado a ouvir Mariah Carey de vez em quando. Te garanto: eles são pais incríveis. Eu confiaria meus filhos a eles.

Eu vou te contar piadas, te ensinar a comer pitangas e já estou escolhendo as taquaras para fazer um campinho na chácara do teu avô. Mas, já vou avisando, faça boas escolhas, porque só podem jogar colorados, como teu primo, tua prima e teu irmão. Aliás, até deixo gremista jogar, mas só no gol. E, se defender pênalti, eu anulo. Vou te ensinar a correr os patos e a fazer xixi nas flores da tua avó.

Assim é a vida, nem sempre é justa, mas é bela, é divertida e é toda tua.


sábado, 15 de outubro de 2011

Valorização dos professores: carta aberta ao governador Tarso Genro


O que vou escrever aqui não é nenhuma novidade: educação de qualidade e transformadora só se faz com professores bem pagos, com tempo para refletir, escutar, dialogar e criar. A realidade do ensino público nos níveis fundamental e médio não poderia ser mais distante dessa obviedade. Mas essa é uma daquelas tragédias que vão perdendo sua capacidade de ferir, porque nos acostumamos. Ela não incomoda mais do que um segundo e passamos adiante, como se não houvesse jeito. Ela naturalizou-se.
Desculpem-me se vão ler de novo sobre isso. Mas, se é verdade que muita gente tem dito essas palavras, é também real o fato de que nossos ouvidos perderam a sensibilidade para elas. E, se nos acostumamos, a vida dos governantes fica muito, mas muito fácil.
O que se pede são salários dignos e, sobretudo, tempo remunerado para preparação de aulas, leitura, reflexão, inventividade. Fazer com que a carreira de professor seja desejada pelos jovens. Que eles olhem para ela e pensem que, além da realização pessoal, poderão morar bem, vestir-se com decência, criar seus filhos, viajar uma vez no ano. É pedir demais para quem investe tanto tempo em sua formação e desempenha o papel de formador dos brasileiros? Sugiro uma experiência. Perguntem a qualquer professor se deseja que seu filho siga a sua profissão. Eu fiz isso: as pessoas quase caíam em prantos ante a possibilidade.
O fato é que os sucessivos governos estaduais (de diversos estados, mas aqui, me refiro, especificamente, ao Rio Grande do Sul) aproveitam muito bem a ideia de que não há como mudar verdadeiramente essa situação. Reiteram tal chavão quando estão no poder. De minha parte, me nego a acreditar nisso. Trabalho no magistério federal em nível universitário. Assim, minha condição financeira é bem menos injusta do que a dos meus colegas sobre os quais escrevo aqui.
Porém, isso tem a ver diretamente comigo sim. Trabalho em um curso de licenciatura. Eu formo professores. Alguns de meus alunos farão mestrado e doutorado, serão professores universitários. Outros irão para as escolas da rede privada que, em parte, não foge da realidade que descrevo aqui. Mas, grande parte irá trabalhar na educação básica pública. Eles formarão a maioria dos cidadãos brasileiros. Gerações inteiras, proporcionalmente os mais precarizados e os que mais precisam de atenção, estímulo, esperança e qualidade. Se eu acreditasse que não há jeito desses profissionais terem salários e condições de trabalho dignas, como querem me fazer crer TODOS os governos, então eu iria procurar outra profissão.
Não estou dizendo que se deva equiparar os salários do magistério ao dos deputados, juízes, promotores, procuradores. Isso seria imensa ousadia, não é mesmo? Poderíamos começar respeitando o piso nacional. Depois, poderíamos pensar em, digamos, R$ 3.000,00 para um iniciante com, no mínimo, 50% para atividades extra-classe. Claro, isso implica investimento. Aliás, educação não tem sido vista como investimento, mas como despesa. Educação não é algo barato. Não pode ser visto como algo que deva ser feito com poucos recursos. Se começar assim, uma política de governo só pode dar errado.
Aqui, então, devo nomear declaradamente o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Votei nele e ainda não me arrependo do meu voto. Seu titubeio em instaurar o piso salarial nacional para o magistério, que ele mesmo criou quando estava no Ministério da Educação, foi assustador. Tornou-o igual à sua antecessora, de quem me eximo de escrever o nome em respeito a meus leitores. Agora, o governador Tarso Genro parece inclinado a pagar o piso, em ano vindouro. Contudo, quando se esperava algo realmente novo, suas modificações na educação estão relacionadas a uma avaliação dos professores.
Que justiça há em avaliar pelo mérito e pelo desejo de aperfeiçoar-se, professores que trabalham 60 horas em três escolas diferentes, interagindo com centenas de alunos que eles têm a obrigação de aprovar no final do ano sem nem ter certeza de cumprirem os requisitos básicos? Vão cobrar que busque se aperfeiçoar, saiba lidar com o mundo virtual, inove, seja criativo, prospectivo e quantas mais palavras a mentalidade empreendedora inventar para transferir para os trabalhadores da educação uma responsabilidade que, só em parte, é deles.
Avaliação é algo necessário, deve ser implantada com rigor, depois de amplo e eficaz diálogo com a comunidade de professores e com a sociedade. Porém, avaliação, tecnologia, gestão, qualquer coisa vem DEPOIS da concreta valorização do magistério. Só isso não basta, é certo. Depois, avaliações pertinentes devem trabalhar, junto com outras ações, para inibir e corrigir aqueles professores que não fizerem jus a seus salários. Mas a base de tudo está em professores bem pagos, Minha nossa, quantas vezes se tem que repetir essa obviedade?
Um governo que se diz democrático e popular deve tomar como prioridade a instalação da valorização do magistério. Mas o governador Tarso Genro parece inclinado a fazer o mínimo. Parece que sua ideia é poder brandir, ao final de seu mandato “fizemos mais do que a nossa antecessora”. Governador Tarso, me escute: se Vossa Excelência ficar quietinho sentado na sua cadeira, já terá feito mais que sua antecessora que, além de aviltar como muitos o magistério, ainda desaforou e foi mal educada, grosseira e patética no trato com os professores. O partido dela foi uma forças mais nocivas contra o ensino público também quando ocupou o governo federal. Isso todos nós sabemos. Mas eu pergunto: é só isso que o senhor quer? Essa é a ideia que tem de si mesmo como político? O senhor será um governador desse tamanhinho, só? Ajude-me a não acreditar nisso.
Com todo respeito, eu digo que a sua OBRIGAÇÃO, para honrar a trajetória de lutas que seu partido desenhou nas décadas de 1980 e 1990 é a de promover a valorização do magistério e, a partir daí, desencadear mudanças radicais na educação. Com que recursos, poderão perguntar. Mas eu sei, e sei que Vossa Excelência também sabe, que esses recursos cabe ao senhor e sua equipe terem criatividade para gerar. Tirem de algum lugar, encontrem, captem, sejam inventivos, ora. Estejam à altura de seus cargos e da confiança de milhões de gaúchos. Esteja o senhor à altura de seu próprio projeto como estadista. Não se contente em ser melhor que sua antecessora. Qualquer um seria.
Escrevo tudo isso sem esperança de que gere verdadeiro efeito no poder ou no que quer que seja. No fundo, penso que talvez a única força que pode propulsar tamanha modificação nas mentes e no peito da sociedade e dos governantes, é uma retumbante ação de protesto por parte do magistério. Algo realmente grande e forte e pacífico e firme até o fim. Sem aceitar nada menos do que a concreta valorização. Mas será que ainda podemos exigir mais isso dos professores, que já fazem tanto, com tão pouco?
Ainda assim, minha impressão é a de que, sem mobilização da categoria e da sociedade, o governo seguirá na cômoda posição de dar um pequeno aumento percentual e vangloriar-se de estar fazendo grande coisa.
Será que posso ter esperanças de estar enganado?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A Era da Incerteza: de que lado estamos

Em seu Tempos Líquidos (um livrinho bem maior por dentro do que por fora), o sociólogo polonês Zygmunt Baumann faz uma condensação de muitas das idéias que expôs em obras anteriores. Creio não ser errado dizer que o livro é uma síntese delas. Confesso que meu gosto pelo livro foi aumentando conforme o lia e chegou ao ápice no último capítulo. Ali, o velho pensador faz uma avaliação quase poética sobre a utopia.

Zygmunt Baumann

A visão medieval e tradicional do homem como um guarda-caça, que deve zelar pelo mundo deixando-o como Deus criou, teria sido sucedida, no período moderno, pela utopia do jardineiro. Os homens acreditaram poder substituir um suposto criador e, eles mesmos, recriarem o mundo. Não mais a natureza com sua ferocidade e imperfeição, não mais a floresta, mas sim o jardim planejado, simétrico, inequívoco. Fruto da arte do homem. Hoje, temos a ruína da utopia do jardineiro, gerada, entre outros motivos, pela frustração derivada do fato dela não ter trazido a perfeição que prometia. E, também, do perigo autoritário devido à essa busca de perfeição. Porém, não se colocou algo necessariamente melhor no lugar.

O que Baumann identifica como hegemônico, na virada do século XX para o XXI, é o procedimento que pode ser descrito pela metáfora do caçador. “A única tarefa que os caçadores buscam é outra ‘matança’, suficientemente grande para encherem totalmente suas bolsas. Com toda certeza, eles não consideram seu dever assegurar que o suprimento de animais que habitam a floresta seja recomposto depois (e apesar) de sua caçada.” (...) “Agora somos todos caçadores, ou chamados de caçadores e compelidos a agir como tal, sob pena de sermos expulsos da caçada, ou (nem pensar nisso) relegados às fileiras da caça. E o quanto quer que olhemos em volta, provavelmente veremos outros caçadores solitários como nós, ou caçadores caçando em grupos da maneira como nós mesmos também tentamos.”

A reflexão de Baumann se encaminha para reafirmar algo que é recorrente em sua obra. O diagnóstico de que, cada vez mais, temos dificuldades de nos pensarmos como coletividade. Todos exigem de nós que demos soluções individuais para problemas gerados coletivamente, e nosso valor é medido por nosso sucesso em dar essas soluções. Acontece que, pelo próprio teor do sistema, só uma minoria pode dar essas respostas.

Baumann é um sociólogo com muita proximidade à filosofia, como ele mesmo já afirmou. Recentemente, um texto infeliz de uma fonte de onde somente se pode esperar coisas como esta, duvidava da importância de se estudar sociologia e filosofia no ensino médio (imagino que o raciocínio também se estenda à história, geografia e literatura). O articulista dizia que precisamos de mais engenheiros e menos estudiosos de ciências sociais e humanidades. Veja-se que, quem estuda humanidades, periga acabar analisando o mundo como Baumann. E talvez espalhem essas idéias. E se juntem nas esquinas aos protestos que espalham pelo mundo real e virtual. Onde vai dar isso tudo, ninguém sabe, mas é bom pensar que palavras e ações contra-hegemônicas estão ocorrendo e se difundindo. Quem não gosta de críticas à forma como as coisas estão postas, acaba celebrando o comportamento do caçador, e deve arrepiar os braços de emoção vendo-o enunciado de modo tão explícito e sem rodeios como neste vídeo:


Agradeço a meus alunos de História Contemporânea I, Vinicius Motta e Vitor da Cruz por me apresentarem esse video

"Tempos Líquidos" foi publicado no Brasil pela Jorge Zahar e é bem baratinho.

sábado, 1 de outubro de 2011

O vaqueano do Quaraí



A imagem busquei aqui  http://rsemfoco.blogspot.com/2011/02/mitos-e-lendas-do-sul-negrinho-do.html



O que eu sei do mulato Adão? Quase nada. Umas poucas informações encontradas nas folhas amarelas de um antigo processo criminal, em uma tarde cinzenta de pesquisa no arquivo.

Foi um alvoroço: chegou até o delegado de polícia de Alegrete uma denúncia de que se estavam seduzindo alguns escravos, ali e no município vizinho, para que fugissem para o Estado Oriental, com chamavam o Uruguai naqueles tempos. Era outubro de 1850. O acusado era Paulino, qualificado pelo delegado como sendo um “soldado desertor”. A denúncia fora feita por Maneco Meu Deus, capataz de estância. Maneco descobrira que os escravos do seu senhor tinham sido convidados para fugir. Escrevera, então, um bilhete a outro senhor, dando conta que seu escravo, o mulato Adão, também havia entrado no convite. Além dele, teriam sido convidados cativos de mais três senhores.

 Os convites teriam sido feitos por Paulino. Em seu depoimento, o senhor do mulato Adão contou que recebera o bilhete com o aviso e interrogara seu escravo. Adão dissera que, de fato, recebera o convite, mas que não tinha aceitado. Ao que o senhor disse ter “castigado, correcionalmente”, o escravo.

Até aí, temos uma história sobre um homem livre, provavelmente desertor que, sabe-se lá por quais motivos, teria tentado organizar uma fuga de escravos para o Uruguai. Acontece que novas testemunhas declararam que, na verdade, a fuga estava sendo orquestrada, em conjunto, pelo “desertor” Paulino, por um escravo de nome Manoel e pelo próprio mulato Adão. Manoel e Adão foram acareados e acusaram-se mutuamente. Depois, descobre-se que Paulino havia trabalhado como peão, em algumas das estâncias cujos escravos estavam envolvidos na fuga. Pode ter funcionado como um elo de ligação, um comunicador. Entenda-se bem, os escravos não viviam em campos de concentração. Deslocavam-se, alguns viajavam e trabalhavam por certos períodos longe de seus senhores. Escravos de senhores diferentes visitavam-se, como comprova o fato de que muitos eram compadres. Mas uma fuga assim, envolvendo cativos de quatro estâncias diferentes, separadas por dezenas, talvez por mais de uma centena de quilômetros, exigia um pouco mais de logística.

Em seu depoimento, o preto Manoel declarou que Adão organizara a fuga gabando-se de ser “vaqueano do Quaraí”, ou seja, afirmando conhecer os caminhos e rotas de escape através do rio que fazia a divisa entre os dois países. Investigando um pouco mais, soube-se que Adão tinha um histórico de fuga. Foi perguntado se era verdade que já havia fugido uma vez para o “Outro Lado”. Sim, isso era verdade, contou o escravo. Porém, arrependera-se, pois o Uruguai encontrava-se em guerra. Chegando no Salto (cidade uruguaia),  “agarraram-no para ser soldado”. E, como ele era “inimigo de ser soldado”, desertara do exército e voltara a apresentar-se a seu senhor. Diz ter conseguido, deste, a promessa de ser vendido. Esse fato conta a favor da hipótese de que Adão tenha mesmo sido um dos organizadores da fuga, tanto mais quando sabemos que alguns dos convidados eram escravos de um Coronel da Guarda Nacional, e que haviam prometido roubar as armas que seu senhor tinha no paiol. Adão sabia que era perigoso ir para o Outro Lado sozinho e desarmado.

Durante muito tempo, os historiadores acharam difícil que a escravidão fosse importante nas estâncias do Rio Grande do Sul. Um dos argumentos era justamente o custo da vigilância sobre escravos que trabalhavam a cavalo, em um mundo sem cercas, próximos à fronteira com países onde a escravidão não existia mais. Hoje, isso caiu por terra, a história da escravidão avançou e se sabe que as formas de manutenção dessas relações não eram apenas a vigilância e a coerção, embora elas também estivessem presentes. Entre muitas outras coisas, o caso do mulato Adão mostra como cruzar a fronteira era algo difícil e que não garantia, automaticamente, uma situação muito melhor do que a vida da qual se fugia. 

Seja como for, eu fiquei a imaginar o mulato Adão, com seus planos novamente frustrados, pensando nas consequências daquilo. Se iria lhe render uma nova surra. Ou, talvez, se seu senhor, convencido de que ele não tinha mesmo arrumação, agora realmente daria jeito de vendê-lo. Seria uma vitória. Ou, quem sabe, enquanto saía da casa do delegado e era levado de volta à estância, antes que ficasse de novo conversador e bem disposto, talvez tenha olhado para o sul e refeito mentalmente, metódico e convicto, o mapa das quebradas do Quaraí.