sábado, 10 de dezembro de 2011

Fundamentalismo religioso e esfera pública

Já faz algum tempo que acompanho um movimento de resistência e tomada de posição dos ateus e agnósticos nas redes virtuais. De modo militante e, por vezes, provocativo, procuram contrapor-se ao que chamam de avanço de uma religiosidade fundamentalista, vinda principalmente das chamadas igrejas neo-pentecostais, mas não só delas. Uma das polêmicas recentes se deu em torno deste texto da excelente jornalista Eliane Brum.

Demorei a me manifestar sobre o tema. Em primeiro lugar, porque não acho que eu tenha que ter posição a respeito de tudo. Aliás, se tem coisa que me dá nos nervos é uma pá de gente metida a intelectual que parece considerar que é sua missão divina opinar sobre tudo e qualquer coisa na net. Além disso, como sempre, procuro evitar a tentação de simplificar demasiadamente as coisas. E, por fim, tenho por princípio o respeito a todo sentimento e filiação genuíno das pessoas, como são muitos afetos religiosos, desde que não se transformem em base para regras sociais estendidas aos não-crentes.

Há bons estudos que fazem as perguntas certas: como e por que essas Igrejas funcionam e fazem sucesso? Entre várias respostas estão, por exemplo, o senso de comunidade e ajuda mútua que proporcionam. Certa vez, um conhecido de família evangélica me contou que, quando criança, precisaram se mudar, em busca de emprego. Na nova cidade, foram acolhidos por “gente da Igreja” a que pertenciam, o que permitiu que seu pai conseguisse um emprego e uma forma de começar a nova vida. O que, naturalmente, implicaria em novos dízimos para a Igreja.

Quando escrevo “senso” de comunidade, vou além dessas efetivas prestações materiais e incluo a própria sensação de conforto emocional oferecida pela comunidade. Uma arma potente para enfrentar a insegurança aterradora da vida. Sobretudo para aqueles que têm poucos meios de sobrevivência (embora esse nem sempre seja o público dessas Igrejas). Essa segurança emocional se apresenta também no oferecimento de uma versão simples e organizada das “regras do mundo”. Preto e branco: quem as segue, vai ao paraíso (começando por uma vida melhor aqui mesmo). Quem não segue, terá danação eterna. Os males deste mundo são causados por erros em relação a essa moral, infundidas por um ser maligno. A Igreja também oferece as armas e a ajuda para lidar contra essa fonte de males.

PORÉM, compreender nada tem a ver com gostar e concordar.

Nesse ponto, estou sintonizado com a reação de gente como eu: ateus e agnósticos. Fico apavorado quando vejo as ações coordenadas da “bancada evangélica” no Congresso contra as pesquisas com células tronco, contra a reprodução assistida, contra a união legal de pessoas do mesmo sexo. Lutamos por milênios para abrandar o sofrimento de pacientes com doenças neurológicas graves. Primeiro, para saber o que eram. Depois, para tentar dar esperança de uma vida mais autônoma, mais livre, às pessoas que sofrem desses males. E são milhões de seres humanos. Lutamos para que casais que não poderiam ter filhos pelos meios “naturais” (seja lá o que essa palavra signifique), pudessem realizar um sonho gestado a dois, às vezes acalentado por anos a fio. Para que pessoas que se amam e que teceram uma vida comum possam ter o direito de gerir o que construíram em conjunto. Essas são batalhas ainda travadas na atualidade, mas onde muito campo foi ganho.

É impossível para mim falar “de fora” desse assunto. Meu pai sofreu do Mal de Parkinson por mais de 40 anos. Ver a doença avançar inapelavelmente sobre sua mente hábil e sobre seu coração generoso não permite que eu tome outra posição. Meu filho só está comigo porque pudemos contar com a reprodução assistida. Eu sei que sou melhor por causa dele. Tenho amigos homossexuais a quem amo como irmãos. Ver a luta que precisam travar todos os dias, ataca minha alma. No mundo desenhado segundo os desígneos dos deputados evangélicos, que se dizem “emissários de deus”, gente como o meu pai deve sofrer e degenerar sem nenhuma esperança através de uma morte lenta e terrível. Nesse mundo, meu filho não estaria aqui. E meus amigos deveriam sofrer quietos a absoluta repressão de sua natureza.

Para mim, não é mais possível ficar em silêncio. O Estado que constituo como cidadão deve garantir a liberdade de credo para todos aqueles que assim o desejarem. Mas deve ser vigilante e ativo para impedir que crenças particulares coloquem freios nos avanços que a humanidade vem construindo para minorar o sofrimento e a dor. Para criar esperança.

Eu lamento que os modos de conseguir segurança e ajuda, para muitos, passem pelo dogmatismo religioso. Sei também que as devoções não dogmáticas podem, inclusive, ser fenômenos belos e interessantes. Posso concordar que assim seja, desde que isso não interfira nas formas como as leis e a organização pública se estruturam. Se for dessa forma, tudo bem que se acredite em deus, em Ísis, Osíris, em Jupter, Marduk ou no Visa. Agora, uma confissão: quando penso nos pastores que nem acreditam no que pregam e lucram milhões. Bom, aí eu realmente lamento que o inferno não exista.

2 comentários:

  1. Farinatti, concordo plenamente com teu texto.
    Há alguns anos, venho questionando - como agnóstica e gestora pública - a hipócrita separação entre igreja e Estado que ocorre no Brasil. Como pode ser chamado laico um Estado que tem dezenas de feriados nacionais religiosos??! Que tem cruzes e imagens de Jesus Cristo em repartições públicas?!
    Não sendo laico, como pode este mesmo Estado garantir a liberdade de credo se ele já tem lado?!?!
    Isso tudo me preocupa e muito. Ainda bem que há a internet como uma praça pública onde podemos nos reunir e protestar e tentar fazer alguma coisa...
    Um abraço

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  2. Pois é Marla. O que mais me assusta são as interdições públicas, que prejudicam a todos, como o caso da tentativa de impedir o prosseguimento da pesquisa com células tronco. Mas o importante é sempre o debate e o confronto de ideias, de parte a parte.

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