sábado, 14 de maio de 2011

Montmartre, domingo de sol

O dia de hoje, de sol pálido, e mais alguns eventos coincidentes, me fizeram lembrar de um domigo de abril em 2006, quando moramos um semestre em Paris. Este é um dos textos que enviei aos amigos.

Quando nós morávamos no Rio de Janeiro, eu tentava parecer o menos estrangeiro possível. Só que não adiantava, toda vez em que eu passava pela Baía da Guanabara, olhava o Pão-de-Açúcar e o queixo ia lá no chão... Pois o mesmo aconteceu aqui. Hoje fomos a Montmartre. Não há lugar onde Paris seja mais parecida com a Paris que o mundo inteiro imagina. Ladeiras com escadas, dezenas de cafés e pequenos restaurantes com mesinhas nas calçadas, museus, artistas pintando nas ruas, essas coisas.

Essa imagem é um pouco de história e muito de artifício. Na virada do século XIX para o XX, aquele bairro era o local por excelência da vida boêmia de Paris. Nas ladeiras da “colina”, como é chamado também, havia ateliês de pintores como Renoir e, depois, moraram ali vanguardistas como Picasso. Dançarinas mostravam as coxas no Moulin Rouge e faziam agrados a quem pudesse pagar, enquanto Tolouse-Loutrec desenhava a todos sem piedade, como caricaturas. A gente conhece bem essa história. O lugar era a noite da Paris da Belle Époque.

Paris foi sitiada pelos alemães em 1870. O cerco foi intenso, os parisienses comeram todos os animais que viviam na cidade porque não havia mais nada do que se alimentar. Dois ricos industriais católicos fizeram então uma promessa ao Sagrado Coração de Jesus. Se os alemães levantassem o cerco e não conseguissem invadir a cidade, eles financiariam a construção de uma Igreja monumental no ponto mais alto da Colina de Montmartre. Paris resistiu, os alemães se retiraram, os animais voltaram à cidade (aliás, estão muito a vontade: um pombo até cagou no meu cabelo, mas tudo bem...). Assim, foi construída a Igreja do Sacre-Coeur. Toda branca e que eu acabo associando sempre com um Taj-Mahal parisiense. Talvez uma influência do orientalismo que grassava na Europa na segunda metade do século XIX.

Hoje, os parisienses fazem de um tudo pra reconstruir artificalmente aquela imagem da Paris que os turistas querem ver em Montmartre: algumas casas muito antigas estão bem preservadas, há pintores na rua ou com ateliês abertos, volta e meia alguma cantora imita Piaff com um realejo. Eles fingem que é mesmo aquela Paris que os turistas esperam e as centenas de turistas que inundam as ruas estreitas fingem que acreditam. Mas o diacho é que funciona!

Foi igualzinho ao caso do Rio. Eu sabia de tudo isso, mas não adiantou nadinha. O meu queixo caiu de novo. Aliás, ainda agora está a meio caminho de sua posição normal. Um pouco, não há como negar, foi por ver a imagem da Paris que a gente sempre imagina. Agora, outro tanto, e bem fundo, foi por outros motivos. A gente sai do metrô em um bairro desfavorecido, no XVIIIme, e vai chegando perto da Colina. O dia estava lindo, com sol, o que é raro por aqui. Tinha muita gente sentada nos gramados que costeiam a subida para o Sacre-Coeur. Foi me dando uma calma, uma alegria, uma vontade de fazer que nem aquele povo todo, e só sentar ali no sol, ventinho no rosto, cara de bobo de tão tranqüilo, olhando Paris inteira lá embaixo.

Seguimos subindo. Montmartre tem ruas tortuosas, ladeiras com escadas, casas antigas com amores-perfeitos nas janelas. A Nika ficou linda naquelas ruas, tirei um monte de fotos. Entendi porque os pintores todos moraram ou trabalharam lá. Ah... e entendi também porque o puteiro ficava lá. Imagina só: fazer farra a noite inteira e depois curar a ressaca descendo a colina, vendo o amanhecer com a cidade lá embaixo. Devia ser uma experiência religiosa (quem sabe não veio da lembrança de um momento desses a idéia daqueles senhores em construir a Igreja do Sacre-Coeur?).

O Montmartre que bateu fundo em mim é esse, e também o dos velhinhos sentados conversando calmamente no domingo de sol, com seus infalíveis cachorros pela coleira, o dos homens falando alto e jogando bocha no parque (isso mesmo, aqui eles também jogam bocha, e depois não acreditam quando eu digo que Jaguari dita moda para o mundo inteiro). É o Montmartre dos cafés e dos turistas também, mas acima de tudo é o Montmartre dos recantos afastados da multidão, nas pequenas praças onde a gente senta para ver as crianças brincarem.

Eu havia preparado um outro texto, bem político e social analisando os eventos das manifestações. Foi horrível ir até a École e encontrar lá apenas a polícia. Nesse texto também iam entrar umas reclamações porque nos mudamos para a Maison du Brésil e agora estamos morando numa garagem, e todo mundo insiste em dizer que é uma experiência arquitetônica, que é uma obra-prima da arquitetura moderna. Que viver nesses apartamentos é habitar a arte. Vão fazer experiência arquitetônica na casa da mãe deles. Lugar pra morar tem que ser bom de morar. E tenho dito! Mas de nada disso vou falar mais agora. O texto social mando pra vocês outra hora. E vocês leiam se quiserem. Mas neste aqui, neste exato momento, não consigo falar de mais nada senão das ruas inclinadas de Montmartre, das crianças nas praças e dos telhados de Paris lá embaixo.

Sem dinheiro para sentar nos cafés, mas parar em frente a eles é de graça...



2 comentários:

  1. Acredito que toda memória é uma reinvenção do passado.E é claro traz com elas as sensações do que foi vivido.Seus textos são repletos de sentimentos,e tem frases geniais. "A Nika ficou linda naquelas ruas" é a coisa mais linda que li últimamente.
    Nós fizemos o passeio tradicional,metrô, bondinho, igreja, praça dos pintores e barzinho..isso de dia. De noite voltamos e andamos muito. Foi um deslumbramento ver esse bairro que sem dúvida tem uma personalidade própria.

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