segunda-feira, 14 de março de 2011

Japão: rotas alteradas

Muito do que eu poderia dizer sobre as catástrofes em série sofridas pelos japoneses, nos últimos dias, já tem sido dito de um modo insuperável pelas imagens assustadoras, que só são menos devastadoras do que as cenas que documentam. E também por textos inteligentes e agudos como o que Marco Weissheimer escreveu dias atrás.
Eu não conseguiria traduzir a tristeza e o silêncio que se apoderaram de parte de mim com uma concretude que me surpreendeu, e que vai muito além do impacto efêmero que nos causam as notícias distantes e espetaculares. Aqueles homens, aquelas mulheres, as crianças. O que era e, num segundo, já não é.
O que eu queria compartilhar mesmo, neste exato momento em que leio que houve mais uma explosão na usina nuclear de Fukushima, é minha estranheza diante do bizarro arranjo que liga a devastação causada pela energia nuclear e os japoneses. Foi esse mesmo povo o único a sofrer com a catástrofe das armas atômicas. Ali onde toda a população de duas cidades protagonizou o papel de mártires imolados para que os Estados Unidos dessem a primeira cartada na guerra "fria" contra seu novo inimigo. Aquela gente cujos pais e avós estampam até hoje fotografias e memoriais que deviam fazer pensar sobre a capacidade destruidora da guerra, mas também do progresso e dos imperativos políticos e econômicos.
Pois esse mesmo país apostou na energia nuclear, assumindo todos os riscos, mesmo que ali haja terremotos e tsunamis desde que o mundo é mundo. Já sei, dirão que não há outra forma economicamente viável de conseguir energia em um pais insular e superpovoado. Que para fazer hidrelétricas suficientes seria preciso expulsar milhões de pessoas. Que não há carvão que chegue. Eu sei disso tudo. Também sei que os níveis de consumo exigidos pelo capitalismo japonês hoje não podem viver com pouca energia. Sei ainda que, desde seus princípios na Era Meiji, esse capitalismo era sabedor de que não tinha como prover seus próprios alicerces. Daí as campanhas imperialistas na Coréia, na China e no sudeste asiático que desembocaram na rivalidade com o Império Americano e na face oriental da Segunda Guerra Mundial. E aí o círculo se fecha.


Eu sei de tudo isso e nem tenho forças neste momento ou argumentos organizados para rebater os arautos da maximização econômica e da razão de Estado. Apenas fiquei perplexo. E lembrei de pensadores que escreveram há duzentos anos. Lembrei de Owen, de Fourier e outros com pensamentos que, hoje, nos parecem até ingênuos e que escreveram algumas ideias pouco defensáveis. Mas que levantaram a voz para dizer que a maximização econômica não podia ser a única, talvez nem mesmo a principal forma de pautar os rumos da economia, do Estado, da sociedade e da vida individual. Eu não sei de nada. Me sinto pequeno e triste. Mas esses pensamentos não me abandonavam e agora eu os reparto.

A foto tirei deste site

4 comentários:

  1. Também me passa pela cabeça e pelos sentidos um misto de perplexidade e a sensação de que a história nos prepara para os mesmos círculos de convolução que, coincidentemente, acontecem no início de cada século (lembre da gripe espanhola do século passado, etc). Estou transitando pelas mesmas zonas íntimas do inferno lendo "Mente Cativa", do Czeslaw Milosz, o reencontrar da frase que o poeta polonês ouviu de um colega: "não há nada dentro do homem. Somos vazios." Há relatos ali que amparam esse nosso vazio, preenchido pela besta. Uma mulher que, assim que é descarregada junto a seu filho em Auschwitz, foge da criança, que lhe grita: "mamãe, mamãe". Ela percebe que só sobrevivem as solteiras, que as mães e seus filhos são imediatamente executados pelas forças nazistas. Um guarda do campo lhe pega pelos cabelos, lhe atira dentro do caminhão, gritando: "vaca judia desnaturada, fugindo do próprio filho". Depois, o guarda pega a criança de 5 anos e a atira como um saco de batatas junto à mulher, e os mandam para o crematório.

    Quase compreendo o que Tagore escreveu, que é muito difícil matar um homem, que cerca o homem um conjunto de forças vetoriais que o aniquilaria se não fosse uma ordem harmônica imprecisa que equilibra as coisas. Mas Tagore escreveu isso antes de 1939. Apesar de nós mesmos, de nosso vazio erroneamente preenchido, e apesar da indiferença da natureza quanto à pequenez de nosso senso de segurança, de algum modo tocamos as coisas pra frente. Os japoneses calmamente se solidarizando nas filas de mantimentos, recompondo as peças dos destroços, como no relato de John Hersey, os mutilados de Hiroshima já um dia depois da bomba acreditando que o Japão patriarcal renasceria lentamente da incrível unanimidade de escombros.

    É difícil mostrar otimismo numa situação destas, mas as bolsas de valores (que sempre foram os reais indicativos morais) despencaram quanto às ações da energia nuclear, e subiram exponencialmente quanto às ações das outras energias alternativas.

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  2. Essa sensação que descreves tão bem e tão terrivelmente tem me rondado e trespassado nos últimos tempos.
    Mas o ser humano é difícil de matar sim. A vida se agrega, exige existir, até ficar besta e interrogar seu propósito. Da capacidade de reconstrução dos japoneses, enfeixados por uma cultura dotada de uma resiliência ímpar, disso eu nunca duvidei. Creio que não apenas se reerguerão, como se reergueram já por duas vezes (na Era Meiji e no pós 2a. guerra), como sei que se erguerão repropondo novas formas dessa mesma cultura.
    O otimismo que passa pelo mercado é interessante porque o mercado tem um poder maior do que 10.000 vazamentos nucleares. Porém, o que me desanima é que quando esse desastre for digerido e metabolizado por nossa veloz cultura da informação, quando novos desastres ocuparem os noticiários, novamente a energia nuclear será um bom negócio. E subirá de cotação, não tenho dúvida.
    Que é importante procurar algum otimismo. Esse é um exercício diário. E, para não deixar tudo sombrio, por vezes encontro sim.

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  3. O desastre humano, agora, consegue superar o desastre natural. Como era de se esperar, como sempre é. O desastre natural vem e vai. Depois dele, a reconstrução é possível. A Terra é instável, mas generosa.

    Sem as usinas, choraríamos hoje pelo Japão e, em um ou dois anos, veríamos as fotos da reconstrução. A pujante economia japonesa fazendo milagres junto com a cultura disciplinada de seu povo e com os milhares de dólares e euros que americanos e europeus lhes emprestariam(ão) - ávidos por se tornarem seus credores.

    Sem as usinas, em um ou dois anos, veríamos um Japão forte e renascido, como jamais conseguimos ver o Haiti. sem economia pujante, sem dólares ou euros suficientes (quem quer ser credor do Haiti?), sem a disciplina japonesa, o terremoto no Haiti continua, começou em janeiro de 2010 e ainda não acabou.

    No entanto, no Japão, temos usinas nucleares. E não são poucas. As usinas são o modo do desastre continuar. Talvez, por décadas.

    Desde de que tudo começou, eu não consegui parar de lembrar de um episódio da série de documentários "Século XX: o século do povo, da BBC". No episódio que enfoca a 2ª Guerra, uma senhora japonesa relembra os bombardeios à sua cidade e que ela pegara os 3 filhos pequenos e os amarrara ao corpo (o maior à frente e os dois bebês às costas). Crente de poder salvá-los e a si mesma, ela saltou sobre casas e prédios, caiu em uma piscina, mas nada a fez parar de correr. Quando as sirenes silenciaram, ele pode, enfim, dar sua atenção aos filhos. Todos estavam mortos. Entre lágrimas, a velha senhora - resumindo em si a força de seu povo e, em sua perplexidade, a estupidez da humanidade - termina seu depoimento perguntando: de que valeu essa guerra, se meus três filhos morreram?

    Não temos meios de resistir à natureza. Quem sabe, um pouco de solidariedade, choque e reflexão, nos faça capazes de resistir, ao menos, às opções nocivas do capital.

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  4. O desastre nuclear é a forma da catástrofe continuar. Exatamente. E, pelas notícias que chegam agora, a coisa está ficando mesmo muito grave.

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