domingo, 27 de março de 2011

Os Funerais da Mamãe Grande, de Gabriel García Márquez


Uma mulher com roupas austeras e olhar severo que viaja ao lado da menina com uma flor enrolada em jornal, em um trem poeirento que atravessa plantações de bananeiras e casas com varandas. Um dentista que se vê diante da possibilidade de despejar o ódio de toda uma cidade contra um tirano que a oprime. O honrado artesão quase-anônimo que constrói a gaiola mais bela de todos os tempos. A viúva Montiel, a passagem do tempo, o sentido da vida, a morte que não chega e um outono sem fim. O calor que faz com que os pássaros rompam as telas das janelas para morrer dentro das casas nas tardes mormacentas. Estes são alguns dos personagens e situações apresentadas ao leitor de “Os Funerais da Mamãe Grande”.

Gabriel García Márquez declarou, certa vez, o efeito mágico que a leitura de “A Metamorfose”, de Kafka, havia provocado nele. Quando lera sua inesquecível primeira frase, diz ter pensado: “mas então se pode fazer isso com literatura? Se é assim, isso me interessa.” Posso dizer o mesmo quanto a essa coletânea de contos do colombiano, que pouca gente cita.

Foi através de "Os Funerais da Mamãe Grande" que iniciou não apenas meu amor desmedido pela obra de García Márquez, mas também meu interesse mais genuíno por literatura. Lembro do dia em que peguei o livro na estante de casa. Meus pais o haviam ganhado havia muito tempo, de um tio. Provavelmente nunca leram. Era a primeira edição, com ilustrações do Caribé. Para mim, García Marquez sempre será ligado ao traço forte do desenhista baiano-argentino.

Muitos anos depois, diante da temerária tarefa de dar um livro de presente ao Milton Ribeiro(cujas leituras fariam inveja às bibliotecas-espelhos-universos-infinitos, de Borges), escolhi exatamente este. Porque nada poderia ser mais pessoal para mim. Milton leu e fez uma resenha (pode ser lida aqui), para a qual escrevi um comentário que, com poucas modificações, é a base do restante deste texto.

Dentre os livros de contos de GGM, "Os Funerais..." e “A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada” são o ponto alto. Nisso, concordo com o charlles campos: “Olhos de Cão Azul” é um livro de autor ainda em formação, enquanto “Dez Contos Peregrinos” mostra um GGM que já parece um tanto cansado. Por sua vez, Erêndira é um livro mais solto, onde o autor vai mais fundo no realismo fantástico, com destaque para a novela-título e para "O Afogado Mais Bonito do Mundo", um dos contos mais bem escritos que já li, construído sobre um argumento quase inexistente.

Já "Os Funerais..." é uma coletânea que prefigura "O Veneno da Madrugada" e "Cem Anos de Solidão" e, por vezes, desenvolve temas que serão apenas referidos rapidamente nos livros mais alentados. A intertextualidade entre o livro de contos e aqueles dois romances é parte da estratégia de GGM para construir seu universo ficcional. O colombiano busca dar ao leitor a ideia de que, embora revele apenas alguns fragmentos, há um todo interligado, um mundo completo e organizado do qual ele só nos permite vislumbres, o que serve para atiçar mais e mais a curiosidade do leitor.

Assim, entre outros contos desse livro, "A sesta de terça-feira" está ligado a "Cem Anos de Solidão" (CAS). Passa-se em Macondo e, em CAS, saberemos que o ladrão referido no conto foi morto quando tentava entrar na casa da viúva Rebeca (personagem importante de CAS), provavelmente assassinado por ela. Essa mesma viúva reaparece no conto "Um dia depois de sábado", para mim um dos mais fracos da coletânea, embora nos apresente o padre Antônio Isabel del Santíssimo Sacramento del Altar Castañeda y Montero, que, só pelo nome, já merece menção.

Por outro lado, entre outros, o conto-título e "A viúva Montiel" estão ligados a "O Veneno da Madrugada" e nos dão uma visão mais lenta e mais "de perto" de passagens que se dão muito rapidamente naquele livro. Embora, no conto-título, GGM diga que a Mamãe Grande reside em Macondo, ele mudou de ideia ao escrever "O Veneno da Madrugada" e disse ter percebido que aquela era outra cidade.

Em conjunto, o livro inteiro é dedicado às relações de poder e aos malabarismos humanos para viver em uma sociedade onde esse poder é avassalador, antigo e parece eterno, como o calor de Macondo.

O conto-título é uma prefiguração de "O Outono do Patriarca", não apenas na temática e na imagem, mas inclusive no estilo barroco, transbordante, sem jamais perder o “pulso” da narrativa. A Mamãe Grande é apresentada como um misto de nutriz, de mãe-terra e de dona de bordel, de onde emana toda a fecundidade, mas também toda a autoridade. Neste caso, ela não apenas desempenha todos os atributos míticos do feminino, mas também usurpa os dons do controle e da severidade tradicionalmente associados aos homens mas que, no universo de GGM, pertencem às mulheres. Elas é que fazem o mundo seguir girando. Os homens, em geral, são uns desvairados.

É de poder que se trata em “Um dia desses”, quando o Sr. Escovar, dentista sem título e bom madrugador, fez com que o tenente, sentado em sua cadeira, com um lado do rosto inchado como um melão e sem barbear, nos pagasse vinte mortos. São essas regras imemoriais que encontram o desafio heróico da mulher de ”A sesta de terça-feira". O leitor vai junto com essa senhora que entra em Macondo na hora da sesta (mais uma lei que desafia), decidida a enfrentar a cidade. Mais não conto para não estragar a história. Apenas saibam que essa Antígona caribenha me acompanha até hoje.

Um comentário:

  1. Faz muito tempo que não revisito esse livro. Vou ter que re-comprá-lo, pois foi um dos volumes dos quais me abstive numa crise de saturação que tive quanto ao GGM. Eu tinha e li tudo dele, inclusive os títulos realmente obscuros (seu roteiro de cinema, suas aulas de escrita criativa), mas senti a necessidade de acabar com essa obsessão, mandando tudo às favas. Dez anos depois que fui retornar ao colombiano, já imunizado e cheio de dissociação crítica para saber que para mim tinham valor três livros apenas dele, o restante sendo as arestas do "antes" e do "depois".

    Se há um escritor que lamento muitíssimo, esse se chama Garcia Márquez. Seu talento morreu em 1983, e dali em diante GGM não escreveu nada mais de substancial, ao contrário de Vargas Llosa, que se reinventou numa produção tardia, assim como o fez outros grandes escritores, como Saramago e Philip Roth. GGM se enfunou na preguiça e nas adulações da fama, e deixou de ser uma das mentes mais inventivas da literatura para ser apenas uma grife. Por isso não o perdo-o, por ter destruído todo seu potencial, seu estilo inigualável, suas amplas qualidades de escritor. Num texto de seus 20 anos, GGM faz uma crítica ao então crepuscular Hemingway, condenando-o por ter entregado os pontos. A mesma coisa se pode dizer dele.

    Mas Mamãe Grande também me impressionou, ainda que não ache GGM um grande contista_ está muito atrás, nessa seara, a Borges e Cortázar, ainda que à frente de Bolaño. O que achei de mais válido nesses contos é o treino da voz que seria usada em CAS, o que se vê muito no conto do título.

    ( Eu acho o Crônica de Uma Morte Anunciada um romance menor do Márquez, um tema insosso, uma narrativa arrastada e sem interesse, mas que, de súbito, num piscar de olhos, leva o leitor entediado ao arrebatamento: trata-se da página e meia em que o autor faz uma quebra temporal para nos mostrar o noivo traído se reencontrando com a noiva abandonada, anos depois, os dois já velhos e desiludidos. O noivo chega com uma mala onde estavam todas as mil cartas recebidas pela mulher arrependida, e GGM sublinha com suprema mestria: todas nunca tendo sido abertas. Isso é lindo, e comprova a grandeza de GGM.)

    ResponderExcluir