domingo, 14 de agosto de 2011

Dia dos Pais

O Miguel acordou às oito, pedindo o mamá. Chovia estrondosamente. Foi demorado fazer sozinho todos os procedimentos de um despertar e preparar para viagem. Coisas que, normalmente, fazemos em dois, mas hoje a mãe dele está em São Paulo, lançando um livro em que é co-autora. Enrolei-me um tanto, ainda mais eu, que costumo ter dificuldade mesmo de arrumar somente a mim.

Miguel adora viajar. Foi cantando no carro, até adormecer. Fomos ver minha mãe e meus avós e visitar a memória do meu pai, na cidade que ele adorava e onde pediu para ser enterrado. Quando chegamos à ponte da entrada, vi que o rio estava caudaloso e barrento, como fica nos invernos de muita chuva. Diferente dos tempos secos de verão, quando ele é manso e limpo. Até hoje, lembro do cheiro do rio quando eu era guri. E do tato da água na pele. E lembro das margens onde corre uma estrada fechada por árvores. Nessa estrada, meu pai e eu caminhávamos nos domingos pela manhã, para ir pescar.

Meu pai era inteligente e irônico. Às vezes, era debochado mesmo. Certa ocasião, numa reunião de pais e mestres, na escola onde era professor, ouviu uma senhora doutrinar: “O problema dos jovens, em seus namoros, é que só querem saber da hora da cama! E a cama não é o mais importante em um relacionamento.” Ao que meu pai pediu a palavra e disse: “Apoiada! Concordo inteiramente!” Ela, cheia de autoridade: “Viram, o Luís Antônio também acha que o sexo não é o mais importante em um relacionamento!” e meu pai: “Espera, Fulana, tu disseste a cama. Daí eu concordo, a cama não é o mais importante!”

Conforme a doença avançou e foi lhe tirando os movimentos e, muito depois, a autonomia e a consciência íntegra, lembro dele ir misturando o humor com uma funda melancolia. E também foi desgostando do futebol. Ele que, na minha infância, vivia verdadeiramente os campeonatos. Lembro que, em 79, houve uma semifinal, Inter x Palmeiras. Lembro de um gol do Falcão, colocando o pé na sola do palmeirense Mococa. Lembro de meu pai me rodar no ar. Eu, com seis anos, achei que estava voando.

Hoje, quando a chuva deu uma trégua, aproveitando o pátio e a casa grande, o Miguel correu sem parar, gritando inteiro, feliz que só ele. Pisoteou o gramado, derrubou umas quantas flores e aterrorizou cães, gatos e galinhas. Encheu os olhos do meu avô quase centenário. Foi então que eu pensei no meu pai. E imaginei que, algum dia, eu devo ter corrido, daquele mesmo jeito, naquele mesmo quintal. E que, talvez, ele tenha me visto como hoje eu vi o Miguel. E que, provavelmente, sentiu o que eu senti. E a minha saudade ficou sem fim.



O mencionado gol do Falcão está entre 0:57 e 1:05 min do vídeo

13 comentários:

  1. Depois desse seu último post delicioso, que me fez dar altas gargalhadas, eis que acabo de ler esse seu post recente com os olhos marejados. Ligaram para mim dando os parabéns ontem, mas nunca fico feliz com essas datas programadas, nunca fico feliz no dia dos pais. Sou absolutamente feliz por ser pai todos os dias. Mas nesse dia X, caio na melancolia da lembrança.

    Belo texto, cara!

    ResponderExcluir
  2. Valeu Charlles!
    Que bom que você gostou dos textos. Eu sempre acho que não se deve exagerar o significado dessas datas, mas aprendi a valorizá-los como possíveis momentos de ritualização. E, como, momentos de evocação de memória.
    E, mal parodiando o Manoel de Barros, eu acho que as estradas, e os rios, por sua forma que lembra o tempo, são seres muito apropriados para chamar a memória.

    ResponderExcluir
  3. Ontem ri muito com teu post, hj me emocionei. Memórias semelhantes,lugares, rios, quintais,pontes e Pais que se foram mas que continuam em nossas lembranças, que com o passar dos anos transformaram-se nessa ausência doce da presença física. Teu dia dos pais foi perfeito e merecido.Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Mais um post teu que me levam as emoções...lembro do teu pai, lembro do humor dele...dos papos na sacada...
    Mas chorei mesmo por ainda ter pai...e ainda não ter um filho que me faça entender meu pai...

    ResponderExcluir
  5. Ah, Guto, que bonito! Sem palavras, sem palavras.
    Feliz Dia dos Pais.

    ResponderExcluir
  6. Guto! Assim vc me mata!

    Me mata de rir com seu post do questionário, e me mata de nó na garganta com esse post!

    Lindo demais!!

    ResponderExcluir
  7. Farinatti, eu perdida aqui em meio aos meus textos resolvi parar para ler esse último post... na verdade não ia comentar... pode não fazer diferença também. Mas resolvi comentar porque acho muito legal e importante a participação aqui. Pra mim essa post teve um significado pq mesmo tendo meu pai vivo não tive ele perto de mim... E para mim o dia dos pais nunca é um dia muito agradável... não sou mãe ainda então não posso fazer essa reflexão fico apenas construindo memórias de como poderia ter sido. Parabéns pelo post, não sei se é relevante comentar mas creio q deves ser um bom pai. Muito emocionante!

    ResponderExcluir
  8. Acabo de descobrir coisas em comum: pais colorados e inteligentes. A primeira lembrança que tenho do meu pai é de um momento num camping, com uma 14 polegadas ligada no grenal, em que ele e meu tio ficavam dizendo "tens que torcer pros vermelhor", "nao, tens que torcer pros azuis", eis que meu pai disse: "se torceres para os vermelhos te deixo comer dois chokitos". Não sei quantos anos eu tinha, mas lembro que jamais deixei a camisa vermelha. E até hoje como chokitos. Mais que dois. Nem sei por que estou escrevendo isso. Vai ver por que minha saudade é constantemente sem fim. Beijos e obrigada pelo post.

    ResponderExcluir
  9. Larissa
    Gostei muito do teu pai. Chokitos é... vou guardar essa na manga.

    ResponderExcluir
  10. Tsc, tsc, tsc, tsc... se vender por dois chokitos.

    ResponderExcluir