segunda-feira, 20 de junho de 2011

Uma aventura no século XX

Também, como é que eu ia querer pular do século XIX diretamente para o século XXI? É uma impossibilidade cronológica. O caso é que passei os últimos dois meses enfiado na produção de um artigo sobre a Inácia, a Juliana, o Estêvão, a Benedita e uns outros escravos do Bento Manoel Ribeiro (aquele mesmo, o anti-herói preferencial da Revolução Farroupilha). Passei a noite de domingo em claro, finalizando o texto. Dali direto para a rodoviária, onde peguei um ônibus para Pelotas. O dia inteiro sem celular e sem internet. Estranho. A viagem foi eterna. Dormi logo na saída, mas acordei um tempo depois, bem confuso. A neblina pouco deixava ver das montanhas cobertas de campos cinzentos, dos vastos horizontes da Serra das Encantadas. Ônibus pinga-pinga. Uma mulher em algum lugar reclamava das horas que teve que passar esperando no consultório do médico. Nem era plano de saúde, era particular. No outro lado do corredor um homem, sua mulher e uma criança, quietos. A criança resmunga e a mãe enfia a mão na bolsa. Tira um queijo, corta um naco. A criança de acomoda. Horas e horas. O homem quieto, olhando para a frente. Nem cidade, nem posto de gasolina, nem pedágio. O ônibus pára, a família desce, avança decidida e desaparece no campo absoluto. À tarde atividade em Pelotas muito interessante. Um café rápido. Valeu a pena. Saio correndo para não perder o ônibus. Sem celular para chamar taxi. Os taxis somem de Pelotas quando chove, me dizem, porque a cidade alaga rápido e não querem fundir os motores. As fachadas antigas, as luzes dos carros e dos letreiros refletidas na atmosfera líquida. Eu na calçada naquele mundo meio Dom Pedro II, meio Blade Runner. Consigo um taxi. Taxista me diz que tem filho da minha idade. Já morou em Santa Maria.  Era militar. Gostou quando eu disse que estava atrasado. Dirigiu de modo suicida, atirando-se à frente de todos para ir mais rápido na cidade inundada. Parecia feliz. Ônibus atrasado na rodoviária. Eu tentando ligar a cobrar de um orelhão para casa. Ainda sei fazer isso? A ligação estava péssima. Ônibus nem chegou, e a viagem vai demorar milênios. Não sei se chego em casa para a meia-noite. Menina sentada no meio-fio com menininho em volta. Ela pintada demais para a idade, mexe numa mochila. Menininho em volta fala com ela o tempo todo. Menina mal responde, organiza as coisas. Ele mostra tudo com o dedo, conversa, pergunta. Ela tira um lencinho de papel da bolsa e limpa o nariz do menino. Olha para os lados. O ônibus chega. Entro e ainda vejo a menina comprando um pastel e uma fanta para o menininho. Fazendo-o sentar na lanchonete. Ele bem comportado, segurando o pastel enorme com as duas mãos. Seis horas de viagem sem celular, sem internet, sem e-book. Chuva açoitando o ônibus, o sacolejar e o ronronar do motor a diesel. Durmo com prazer. Cheguei agora, todos dormem e aqui sentei porque estou sem sono. Ou com sono crônico. Nem sei se tudo isso aconteceu mesmo. Esta incerteza, postar isso no blog. Voltei para casa.

10 comentários:

  1. Olha só tudo o que você teve vontade de tuitar enquanto viajava...

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  2. Passou pela cidade que toda vez que estou chegando me dá nós na garganta... Quase sem nada, mesmo assim, ainda é bela.

    belo texto Farina.

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  3. Lembrei de ti, André. Pedra do Segredo, Serra das Encantadas, Rincão dos Infernos. Tua região tem os melhores nomes de lugares!

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  5. ‎"meio Dom Pedro II, meio Blade Runner"- um do 19 outro do 21 - perfeito...

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  6. "Eu na calçada naquele mundo meio Dom Pedro II, meio Blade Runner."

    Frase do ano.

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  7. Ei, podia ter corrigido umas provas no ônibus =D

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  8. Sei não, Victor. Algo me diz que tu não irias gostar do resultado...

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