sábado, 25 de fevereiro de 2012

Terra Sonâmbula, de Mia Couto

Comprei “Terra Sonâmbula”, primeiro romance do escritor moçambicano Mia Couto, há dois ou três anos. Comecei a ler, parei com um terço do livro lido. Tinha intenção de retomar logo, mas não o fiz. Neste fevereiro ardente de férias sem viagem, meti a mão na estante e resolvi tentar a sorte de novo. Comecei a ler e não conseguia parar. Qualquer interrupção me deixava louco de vontade de voltar ao livro. Os enredos se passam em Moçambique, durante a guerra civil que esfarelou as estruturas daquele mundo, e falam de pessoas que têm que inventar um novo modo de viver em meio a esse caos.

 Terra Sonâmbula. Mia Couto. Companhia das Letras,  2007.


O menino Muidinga nada recorda sobre seu passado. Tudo que sabe é o que lhe conta seu companheiro de jornada, o velho Tuahir. Este, com serviço de enterrar corpos em um campo de refugiados, acabou por salvar Muidinga de ser enterrado vivo. Ensinou novamente o menino a andar e falar, mas nada pode informar sobre o que este teria vivido antes. Os dois, então, vagueiam pela estrada em meio às desordens da guerra, aos assaltos dos bandos armados, aos desmandos das autoridades. Tudo é perigo naqueles lugares. Encontram um ônibus carbonizado à beira da estrada e fazem dele um abrigo. Próximo ao veículo percebem uma mala. Dentro, há cadernos onde um tal Kindzu conta sua jornada. Durante o dia, saem para explorar a região. Durante a noite, o menino lê as histórias para o velho. Conforme avançam na leitura, percebem que é como se o ônibus em ruína pudesse mesmo viajar no espaço, porque a paisagem e as gentes que encontram de dia são sempre diferentes. O livro traz ambos os enredos em paralelo.

Eu entendo quase nada da África ou de Moçambique, a não ser algumas referências de pesquisas históricas ou o que me contaram amigos que ali viveram. Com certeza há no livro muito que, para alguém como eu, não é possível alcançar. Há propriedades metafóricas na história do menino sem memória, que vaga em meio à destruição da guerra que se seguiu à independência do país. O menino procura por essa memória, que também pode ser lida como uma busca por identidade e pela capacidade de dar sentido àquele mundo estilhaçado. Do mesmo modo, a relação da tradição com os novos tempos aparece a toda hora. Por exemplo, no fato de Kindzu ter abandonado sua aldeia, deixado de servir aos ancestrais vivos e mortos e, então, ser amaldiçoado pelo espírito de seu pai, que lhe segue na viagem. Ou então na inadequação de uma modernidade importada que rende algumas passagens hilárias, os poucos momentos risíveis em um livro que provoca, mais que isso, um contínuo aperto no peito do leitor. Provavelmente, os personagens a quem se vai encontrando e desfiando as histórias também são caminhos para pensar aquele lugar: Dona Virgínia, o Fazedor de Rios, o velho aldeão Siqueleto, o português Romão Pinto, o administrador Estêvão Jonas.

Porém, como todos os grandes livros, “Terra Sonâmbula” permite diferentes apropriações, rende sonhos e pensares diversificados. Toda a obra é tecida com uma linguagem poética dotada de profundo lirismo, que põe a gente a sentir.

- É o que, mãe?
- É que estou grávida maistravez.
A velha devaneava, sonhatriz. Com aquela idade como poderia ela se duplicar? A voz dela, porém, trazia certezas capazes de me confundir.
- Estou grávida, filho. Não é de agora, é já de muito tempo.
- Muito tempo, quanto?
- São anos que guardo essa criança. Nem quero ela nascer nesse tempo. Fica assim dentro de mim, me companha o coração.

Por toda parte, há laços que se romperam, familiares, amigos, amantes que se buscam. Kindzu é perseguido pelo espírito de seu pai, o velho Taímo. Porém, por vezes o chama, quer carinhos paternos, muito dificilmente conquistados. É parecido com Muidinga e Tuahir. Este, de certo modo, também pai daquele, porque lhe trouxe para a vida quando estava quase morto. No mesmo caminho está Farida, amor de Kindzu, em busca de seu filho desaparecido. É um mundo roto, onde cada um é um sobrevivente tentando escapar da guerra, seja à procura de seus queridos que se perderam, seja em busca de outro lugar, uma terra em paz. Em meio a tantos fragmentos, contar histórias é quase uma dádiva. Os escritos de Kindzu sobre sua vida são matéria para que Muidinga componha seus próprios sonhos, para que vá conferindo sentido ao mundo que, a custo, procura entender. É Muidinga quem conta essas histórias para Tuahir, que lhe retribui com as suas. E o mesmo ocorre com os diversos personagens que os protagonistas dos dois enredos encontram.

Para mim – um contador de histórias e também filho e também pai – essa foi, de tantas belezas ali encontradas, a principal ressonância do livro de Mia Couto. 


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

No Museu D'Orsay

Eu sempre gostei da pintura europeia produzida da segunda metade do século XIX até o Entre-guerras. Desde quando eu nem sabia que era disso que se tratava. Só via os quadros, as cores, a luz e ficava olhando longe. Assim, estar por quatro meses em Paris, em 2006 e não ir ao Museu D’Orsay, onde há enorme coleção de arte impressionista, era algo fora de cogitação. Mas confesso que não foi fácil. O lugar é muito disputado. Na primeira vez em que tentamos, ficamos mais de hora na fila, com chuva e frio, até que desistimos. Na segunda vez, fomos muito intencionados. Aguentamos duas horas e meia e entramos lá. E tudo valeu.
O Orsay é uma antiga estação de trens cuja arquitetura preservada combina perfeitamente com os quadros pintados naquele fin-de-siècle.


Fica à beira do Sena e, se nem houvesse qualquer coisa dentro, já valeria uma visita.

Não se pode fotografar as pinturas, mas o resto pode.

O texto abaixo foi o que escrevi assim que saí de lá. Na época, enviei para alguns amigos. Como vocês poderão ver, pela dicção do texto, o Orsay me lançou um feitço e eu me criancei por vários dias (mas, como vêem pela foto, não era só eu: é comum ver essas turmas inteiras de crianças, fascinadas, a contemplar e perguntar tudo aos professores).

Paris, 13 de maio de 2006
Fomos lá no Orsay e adoramos bastante. Verdade que tinha um punhado de gente atrapalhando de ver os quadros: uns italianos gritando e esparramando as mãos pra tudo quanto é lado; umas alemoas grandonas, maiores que os homens que vão com elas (dizem que são as tais de norvegianas); uns miles de japoneses: tudo correndo de cá pra lá e batendo foto. Dá vontade de botar todos pra fora... Mas deixemos pra lá, que sou um sujeito de raivas muito passageiras.
Tem os quadros!!!! Os do Manet olham pra gente de um jeito tão intenso que encabula. O menino com o pífaro é de ficar horas. Ele toca a flauta e olha pra gente ao mesmo tempo. É uma inquietação. Da mesma forma que todas as pessoas bem brancas contra os fundos escuros que ele gostava tanto. Até umas jovens nuas. Olhando pra gente. Sempre.

Depois, eu entrando numa sala grande, alta e, da porta, vi que lá na outra parede amanhecia. E, ao lado, fazia tarde a pino. Logo adiante, estavam recolhendo os bichos porque estava anoitecendo. Era tudo Pissaro, que eu passei a amar desde já.

Indo adiante, tinha um quadro do Claude Monet no qual recém tinham tomado café e as coisas ainda estavam sobre a mesa, no jardim, as cadeiras vazias levemente afastadas. Em volta da mesa, fazia uma manhã tão morna e o dia prometia ficar tão lindo, que eu quis entrar pra dentro e mandar os Monet tudo embora. Toca daqui porque quem vai morar nessa casa agora sou eu. Tô cobiçando sim! Quem mandou gavar? É pra já que eu trago minha linda, espalho meus livros, boto rádio pra ouvir jogo do Colorado e nunca ninguém vai dizer que isso aqui não sempre foi meu.
Isso sem falar da ponte verde onde um dia eu ainda vou passar lá e respirar bem fundo...
Quando fui ver o Van Gogh tinha tanta gente na frente que eu quis dar uns cotovelaços, mas a Nika não deixou. No entanto, mesmo com aquele barulho todo, os camponeses tiravam uma sesta no amarelo. Campo de feno. Logo, ia chover. E nos outros quadros todas as cores e formas eram muito apropriadas para sonho. Inclusive o azul.

Eu sempre gostei do Degas. Porém, agora gosto mesmo. Pois, como vocês sabem, eu aprecio de coração e de melancolia os quadros do Hopper. Vocês me acreditam que eu estava passando os olhos numa parede e havia um quadro do Degas que tinha o Hopper todo nele?! Foi daquela matéria ali que o Hopper puxou, puxou, esticou, arrumou, botou uns silêncios e criou sua própria obra. Mas ele tem que dar federação ao Degas. Nessas coisas das solidões, o Degas exerce PRIMAZIA.

Mas de tudo, tudo, tudo que eu vi naquele dia; e aí vou incluindo o Sena com a Rive Droite encostada nele; e boto também as moças do Gauguin acarinhadas numa cor de manga madura que eu conheço e amo desde menino; pois de tudo isso, o que me tirou mesmo de mim, e me estendeu pra muito maior do que eu sou, foi mesmo uma pintura do Lautrec. Porque ele, que tudo caricaturava com amargor, pintou uma cena eterna. O quadro se chama

“Dans le lit”

estava em uma sala escura e eu nunca tinha visto... Não tem como descrever. E nem vou tentar. Nem procurem na internet, porque a visão dele aqui, em uma tela de computador, não tem condão. Nem é o mesmo quadro que vendo lá. Um dia vocês vão lá e vejam. E façam dele algo seu. E até posso apostar que ele continuará com vocês, da mesma foram que ele está trespassado em mim, desde então.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O calor, o Leão e um dia nas minhas férias

O calor de uma explosão nuclear deve ser assim. Um calor que queima a pele da gente pelo simples contato com o ar, que encharca, molha, aplasta, pesa e empurra a pessoa contra o chão, tornando heróico o mínimo movimento. O calor é quase sólido, é denso. Andar dentro dele é como tentar mover-se em um soterramento. Verão é bom para quem está de férias e perto do mar. Ou em Curitiba. Mas nunca em Santa Maria, a cidade que me fez amar o inverno ainda mais. Pois é neste calor e nesta cidade, que tenho passado os últimos três dias me deslocando de um canto a outro, tentando receber um dinheiro que o governo me deve. Rapaz, você não tem noção de como o governo é sovina. Na hora de pegar é ali, na fonte. Depois, para devolver o que pegaram errado, é um caminhão de burocracias. É papel pra lá, papel pra cá, tira cópia, imprime, telefona para Porto Alegre, ouve a porcaria da musiquinha de espera, pede pelamordedeus que te mandem um papel assinado, pelo correio. Não mandam, daí eu tiro pela internet e rezo para que aceitem. Aí vai na Cova do Leão, pega uma senha para ser atendido, para pegar uma senha, para agendar um dia na outra semana para ser atendido. Acontece que esse dia era hoje, o horário às 13:35, a temperatura, 39 graus na sombra. Passo em uma loja de Xerox para tirar cópia de 2.485 papeizinhos com notas de despesas médicas. O dono é evangélico, está ouvindo um DVD de um show gospel brasileiro e cantando junto, enquanto faz as cópias. Que mal me pergunte, pra que tanta cópia? É para tentar receber a restituição do imposto de 2009, digo eu. Mas o que foi que te aconteceu? Respondo que a camélia não caiu do galho (ele não ri). Então me envareto um pouco e conto que eram despesas médicas. Ele diz que o governo é uma cambada de sem-vergonhas e que a única coisa que se pode fazer é mandar uns quantos homens-bomba para Brasília, mas que não vai fazer isso porque aqui o povo é tudo frouxo, ALELUIA! Porque os políticos estão tudo com a alma condenada desde que nasceram. Não vê agora é homem com homem, mulher com mulher e querem tirar os crucifixos das paredes, mas Deus está vendo tudo lá de cima, ALELUIA! Rapaz, olha para o que tu tá fazendo e copia direito os papeizinhos porque aqui já faltam dois! Saio de lá arreliado e me assusto com o que parece um tiro, mas era só o cano de uma Yamaha 125 com um gordão em cima. Não posso ver gordo em motocicleta pequena que lembro sempre de um amigo do meu pai, muito mal-educado, que dizia “lá vai o gordo com uma motinho no meio do rabo.” Então vou até o centro da cidade, deixo o carro no estacionamento. Sim, porque tenho carro 1.0 o que é um luxo e sei que estou me queixando de barriga cheia porque a maioria dos habitantes desta cidade depende do péssimo transporte coletivo que há por aqui, em ônibus sem qualquer ar condicionado e nem estariam pleiteando restituição de imposto de renda porque nem tem renda. Mas, mesmo para minha vida de classe média a coisa não estava fácil. Escuitem. Me arrasto então até a Receita Federal suando como uma tampa de panela onde se cozinha um ensopado e, entrando no lugar, passo do Arizona para a Antártida e quase entorto a boca com o ar condicionado marcado em 19 graus lá dentro, mas vão para a ponte que partiu, querem matar os contribuintes, é isso, é? Chego até lá e consigo ser atendido no horário. Mas me informam que, provavelmente, só vou receber metade do que me devem e sabe-se lá quando. Eu olho feio, mas o Leão nem te ligo. Saio de lá ainda com mais raiva, agora da Antártida para o Saara e acho que vou ter um treco. Quando chego em casa, tomo um banho e me sento em frente ao ventilador pensando que hoje não vou à fisioterapia. Sim, porque velho não faz esporte, nem academia, velho faz fisioterapia. Lá são todos muito queridos e competentes, mas na penúltima vez que eu fui tocava uma música new age de fundo, algo como cachoeira com flauta pan e eu já não agüentava mais e comecei a ficar com vontade de ir ao banheiro. Então entrei nessa baboseira de força do pensamento e pensei forte para que aquilo parasse e descobri que isso funciona mesmo, você pede e o universo atende, só que o universo tem um senso de humor filhodumaputadocaralho e dois velhos oficiais do exército aposentados, na sala ao lado, começaram a se entusiasmar em uma conversa sobre como era bom o tempo do regime militar e eu ali no escuro, ouvindo aquela conversa, todo amarrado e tomando choque me senti num porão da ditadura, credo, sai de mim. Não... hoje não vou a lugar nenhum. Vou ficar em casa e aproveitar o resto deste maravilhoso dia de férias de verão.

Salário digno aos professores - governos não têm desculpa

Excelente matéria de Felipe Prestes no Sul21 vai aos dados e mostra que o setor da educação tem 60% do funcionalismo, mas consome apenas 30% da folha de pagamento do estado do RS. Os dados são do DIEESE. Ao lerem a matéria, notem a enorme fatia ocupada pelo Poder Executivo nos gastos com a folha de pagamento. A desigualdade não era tão grande no governo Olívio Dutra (PT) e vem piorando nos governos de Germano Rigotto (PMDB) e da governadora que lhe sucedeu (PSDB). O governo Tarso Genro (PT) usou, novamente, a cantilena de que não se pode dar dignidade salarial aos professores em razão da folha de pagamento. Nunca convenceu. Agora, se pode ver o porquê.

Assim, os argumentos que tentam naturalizar a injustiça trágica do salário do magistério estadual não se sustentam. Argumento falso, como se vê na matéria. O que falta, sim, é VONTADE POLÍTICA. E isso se resolve na seara da política: protesto, negociação, pressão. Se pagarem os professores com justiça, o estado não vai falir, não virá o apocalipse, só o que acontecerá é que a educação de nossas crianças e jovens vai melhorar de qualidade. Mas será preciso fazer ajustes, sim. E, para variar, seria interessante que os governos ousassem, fizessem algo novo e não sangrassem a carne do magistério, já tão repetidamente violentada.

LEIA A MATÉRIA COMPLETA, aqui

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Verdade

Eu tinha dez anos quando ataquei um padre com um paradoxo.

Eu cursava o tal catecismo, para poder fazer a primeira comunhão. Eu ia à missa, às vezes, levado pela minha avó, que era muito católica, filha de imigrante italiano. Aí chegou a hora de fazer a confissão. Sim, porque para comungar com a glória de Cristo é preciso, primeiro, reconhecer os próprios pecados, pagar penitência e ser absolvido deles.

Eu tinha um pouco de medo daquele negócio de confessionário, a pessoa de joelhos falando para uma cortina. Sabe-se lá quem estava do outro lado. Talvez prevendo reações como a minha, o padre João mudou a estratégia e resolveu confessar os neófitos na sacristia, sentado em uma cadeira, frente a frente com ele. Acho que o padre João era boa gente, porque andava com a camisa do Inter e jogava bola no campinho.

Eu entrei, sem ter ideia do que dizer. Então ele me perguntou se eu tinha algum pecado. Pensei e disse: eu brigo com o meu irmão. Só isso? Perguntou ele. Daí pensei mais um pouco: ah... e às vezes eu minto. 

Hum... Só isso? É, eu respondi. Ele ficou me olhando por um instante. 

Mas às vezes tu mente? Sim, às vezes eu minto.

Novo silêncio. Ele sem saber direito como sair da situação. Tá mentindo agora? Não, respondi.

Mas às vezes tu mente, né? (Eu comecei a me divertir de verdade). Sim, falei devagar, às vezes eu m-i-n-t-o. Ele olhou para os lados de novo. Era bonito ver como lutava. Não queria se dar por vencido. Até que não aguentou.

- Bá... então tá... reza dois pais-nossos e te arranca daqui!


sábado, 4 de fevereiro de 2012

Contos de Futebol, de Aldyr Garcia Schlee




Eu nunca havia lido o Aldyr Garcia Schlee. Conhecia-o por ouvir dizer. Um escritor, morador da fronteira com o Uruguai e o homem que criou o uniforme canarinho da Seleção Brasileira, ao ganhar um concurso, em 1953. Depois, uma amiga foi a um evento sobre o pampa, em Jaguarão, e voltou encantada com a fala que o Schlee fez lá. Então, assisti a “O Banheiro do Papa”, belo filme uruguaio, baseado em um conto seu. Por fim, li esta entrevista que o Iuri Müller e o Maurício Brum fizeram com ele.

Pois acabo de ler pela primeira vez um livro dele “Contos de Futebol”. Publicado, anteriormente, no Uruguai, chega agora em português pela editora Ardotempo. Nada de surpreendente para um autor que cresceu na fronteira, que escreve em português e em espanhol, que criou o uniforme da Seleção do Brasil e sempre viveu o futebol uruguaio com enorme intensidade.

A obra de Schlee é trabalho de fronteiriço e os contos se passam todos na ampla zona de fronteira entre Brasil e Uruguai, ou têm referência a sujeitos que perambulam de uma a outra parte; e também família e grupos de amigos e casais de amantes que nasceram aqui e lá, e que se encontram. A maior parte da ação vai de uma velha casa de aluguel em Pelotas, no sul do Rio Grande, até as tribunas do Estádio Centenário, em Montevidéu. E, sobretudo, Jaguarão.

Mas há também o Maracanã, Buenos Aires e a Inglaterra, principalmente se considerarmos que os personagens viajam a estes lugares pelas ondas dos grandes aparelhos de rádio, pelas notícias de jornal, pelos álbuns de fotografias com os jogadores das copas de 1930 e 1950, pelo que os outros contam, pela esperança e pela memória. Essa geografia imaginada está bem viva no peito e na mente dos habitantes daquelas paragens: meninos cheios de sonho, moças que ficaram por casar, mentirosos ordinários, gente que deixou de partilhar a razão de todos os outros.

O futebol está em todas as histórias, mas em cada uma de modo muito diferente. É direto e apaixonado em algumas e aparece apenas de raspão em outras. Para um amante do esporte como eu, alguém que sabe que esse amor é algo que se imprime na gente desde pequeno, bateram fortes contos como “Aquela tarde impossível” e “Encanto de Futebol”, que unem futebol e meninice – pode haver algo mais importante que uma tarde de futebol para um guri?

Porém, os contos de que mais gostei foram “Maria Adelia”, “Jim”, “Empate” e “O pardo Maciel”. Nos dois primeiros, o futebol é apenas um coadjuvante. Em todos, o que está presente é o mistério e a incerteza da vida. E a paixão por imaginar o que teria ocorrido com este ou aquele. Os personagens se fazem essas perguntas. As escolhas narrativas do autor, com foco variando entre diversos personagens secundários, permitem que se fale de perto, mas nem sempre contando com a certeza sobre as motivações e, por vezes, mesmo sobre os acontecimentos. É a dicção do contador de histórias utilizada na medida certa, sem concessões, porém com verdadeira compaixão (eu diria, com companheirismo) pelas existências de seus personagens.

Vou ler mais de Aldyr Garcia Schlee.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O campus no verão

Ficar trabalhando no campus da UFSM, no verão, presenteia a gente com o estranhamento. 

Há imensas ausências: das pessoas, das práticas habituais, do burburinho. Livre da normalidade que preenche tudo, o espaço se mostra, permite-se o vazio e a imensidão. Pode-se ver o silêncio.




Então, há pequenas salas, grupos de pessoas, árvores, que passavam despercebidas e cujos rumores agora vibram. 



Os prédios do campus são retos, sem graça, puro cimento e vidro. Estão dispostos em grupos, mas cada grupo longe do outro, com muito espaço entre eles. Isso faz com que eu ande por ali olhando tudo como quem está dentro de um sonho.


Sem que se faça nenhum esforço, vem até nós a percepção de estar em um mundo diferente e inquietante.