sábado, 5 de fevereiro de 2011

Luz em Agosto, de W. Faulkner - Parte 2

Luz em Agosto foi publicado em 1932 e é um romance de grande estatura literária. Tenho certeza de que, nesse tempo todo, deve ter se prestado a centenas de teses, artigos, livros, que provavelmente exploram suas múltiplas dimensões literárias, sociais e psicológicas. A esse respeito, li apenas os belos textos do Charlles Campos e da Caminhante, em seus blogs. O que segue, na segunda parte desse texto, são notas de uma leitura feita em tardes de calor escaldante de um verão desumano. E se centram em apenas um dos fios dessa refinada tapeçaria tecida pelo autor, a partir de um fluxo de pensamento que não conseguiu me abandonar desde a leitura. Escrevo sobre a relação entre a trajetória de Joe Christmas e ética religiosa que age como estruturante cultural no Sul dos Estados Unidos, tal como retratado por Faulkner nesse romance. Desde já sugiro aos navegantes que aqueles que não leram Luz em Agosto, não leiam agora os comentários que seguem, pois eles revelam muito do que o autor trata habilmente de esconder do leitor nos capítulos iniciais. A descoberta dessas partes da trama compõe a construção do prazer lúdico da leitura. É apenas uma sugestão, mas, com certeza, eu não abriria mão dele.

A trágica aventura de Joe Christmas (como disseram a Caminhante e o Charlles, um “solitário, calejado, sofrido, maltratado”) instala uma impressão funda no leitor. O que quero destacar aqui é apenas um dos aspectos que poder ser lido a partir desse personagem. Joe Christmas, possivelmente, tem ascendência negra e branca, embora sua aparência permita que passe por branco, naquela sociedade racista.

Em outras palavras, trata-se de um híbrido, um mestiço em uma cultura que não admite a mistura, uma cultura feita e refeita por gente que se esmera em construir e preservar barreiras. Sejam elas barreiras raciais ou diques para represar os desejos. Uma cultura que, em um paradoxo que é apenas aparente, tem flexibilidade para aceitar a mobilidade, desde que essa mobilidade não ultrapasse uns poucos, mas inderrogáveis princípios, que formam aquilo que os brancos acreditam ser as leis da natureza. No Sul retratado por Faulkner, uma dessas leis estipula que os pretos trazem consigo o sinal da danação, de sua condenação pelo Senhor Todo Poderoso. Nesse contexto, qualquer mistura carrega duas marcas tidas como diabólicas: em primeiro lugar, denunciam a presença do sangue negro; em segundo, criam um hibridismo, em um mundo que não suportava o desmanchar dos limites e das fronteiras. Esse hibridismo é logo desfeito por ser tão monstruoso que é inimaginável: a cultura não o concebe e não o admite. Se a pessoa tiver qualquer parte de sangue negro reconhecível, será negro, porque será, para essa cultura racista e puritana, um impuro.

Veja-se que, até os derradeiros instantes de sua vida, quando a possível verdade sobre seu passado lhe é revelada pela Velha Vestida de Roxo, o próprio Christmas tem dúvidas sobre sua história, não tem certeza se tem mesmo o sangue negro. Aliás, o leitor nem mesmo consegue ter essa certeza ao final do livro. Tudo é apenas presumido. Porque nada pode ser fácil de deslindar quando o assunto é uma mistura, em uma cultura que a considera um tabu.

Esse hibridismo tratado como dualidade (porque não consegue ser verdadeiramente uma mescla) é estruturante dos conceitos que o próprio Christmas vai empregar quando construir narrativas para tentar compreender sua própria trajetória. Quando compuser uma narrativa para tentar dar sentido à sua própria vida com “a memória que acredita e o conhecimento que recorda”, nas palavras de Faulkner. É por isso que esmurra a moça negra no celeiro, associando-a à sua porção que considera amaldiçoada. Associando-a a uma possível imagem da mãe, já que, àquela altura, não sabia de qual de seus desconhecidos pais tinha herdado a porção de sangue negro.


É desse modo que se constituíram duas das fases de sua vida. Uma delas quando está sob a tutela do padrasto Mr. Mc Eachern, que encarna um quase-arquétipo paternal do mundo dos brancos e da ética puritana. Educado assim, abaixo de surras e orações, de trabalho e silêncio, Christmas chega, finalmente, a ter algo de seu: uma vaca, sua propriedade, recompensa por seu trabalho. Porém, quando resolve colocar a perder tudo e experimentar o que sente como sendo “o outro lado” de sua natureza, é exatamente essa a vaca que vende, penetrando no submundo da cidade e, por fim, tendo provavelmente assassinado o padrasto. Então sairá pelo mundo e procurará viver como os negros, que sua própria imersão na ética do Sul o sugere ser o caminho da inversão de tudo que havia experimentado até aquele momento.

Contudo, no universo de Faulkner, o desventurado Joe Christmas está condenado a partilhar dois mundos, sem ter a chance de optar por apenas um deles. E a sofrer poderosa influência dessa ética que o despreza. Isso se expressa, por exemplo, no ódio que Christmas tem a ser alvo de piedade. O que fica claro nas diferentes relações que mantém com algumas das mulheres e dos homens da sua vida. Lembremos que ele enfurece quando Miss Burden declara que seria tolerante se ele lhe roubasse, quando se tornasse seu advogado. A mesma atitude condescendente com alguém inferior que se quer agradar, que antes já havia sido a de Mrs. Mc Eachern e que o fazia odiá-la.

Já, às figuras paternas, fosse o Porteiro do Orfanato ou o implacável Mr. McEachern, mesmo com toda a rigidez e a violência e o ódio que lhe reservavam, Joe Christmas dava respeito, porque o tratavam como alguém capaz de suportar o horror. Tratavam-no como um forte. Interessavam-se por ele, mas sem condescendência. Christmas odeia que lhe dispensem condescendência. Associa essa atitude a uma emasculação. Não por acaso, essa será a violência última que sofrerá. Por ironia, mas de modo muito significativo, a verdadeira castração virá das mãos de alguém que é homem e branco. Mais que isso, um representante oficial de todo o pensamento hegemônico que dita as regras sob as quais está organizado aquele mundo.

Castrado, Christmas não poderia jamais procriar, ainda que sobrevivesse. De fato, não havia procriado em nenhum dos vários relacionamentos que mantivera ao longo da vida. Aliás, esse foi justamente o pomo da discórdia entre ele e Miss Burden. Assim, não disseminaria a abominação que é, e que o tornava uma quimera, algo impensável para aquela cultura.

Esse repúdio a ser vítima de piedade, a ser reconhecido como fraco, que está entranhado na alma de Christmas é, por sua vez, uma característica da ética religiosa de traços puritanos que preenche aquela sociedade como o ar que é respirado por cada um e metabolizado de diferentes formas, sendo assim apropriado de modo um específico por cada ser. Cada um cria uma variedade da mesma ética, que pode expressar-se tanto no colérico fanatismo do Tio Doc, na silenciosa violência de Mr. McEachern ou no orgulho legítimo de Mrs. Armstid, avisando ao marido que faria o que bem entendesse com o dinheiro ganho a partir da venda dos ovos das galinhas que ela mesma, e mais ninguém, teve o trabalho de criar.

Essa cultura que preza o trabalho, a disciplina, a obediência religiosa e vê nos negros o sinal inefável da danação eterna estriba-se na construção de certezas inabaláveis. Não se deve admirar que a bíblia e os rituais cristãos venham a servir como o repositório dessas certezas. Eles tem se prestado para isso há milênios. Mas, não nos enganemos, não são a crença e a fé em deus que são essenciais. O que é primordial para os camponeses de macacão, com seus cachimbos, mulas e rezas nas quartas e domingos, é própria possibilidade de ter certezas. A possibilidade de acreditar que há princípios sólidos e imutáveis ordenando o mundo. Nada expressa melhor essa ideia do que a percepção de que os homens que faziam o cerco a Christmas agiriam sem qualquer possibilidade de ter piedade. Porque ter piedade seria admitir que poderiam estar errados, que a ordem universal talvez fosse uma ficção ou então ser insondável mesmo para os crentes. Naquele mundo, nada poderia ser mais subversivo.


4 comentários:

  1. Você achou que a questão do hibridismo dele ficou revelada? Pra mim ela se manteve até o fim. Porque quando apareceram os avós, de início eles disseram ter certeza. Depois o pai de Christmans podia ser mexicano e depois o dono do circo onde ele trabalhava também colocou isso em dúvida, que ele tinha sangue negro mesmo. Ainda mais naquela época, eu me pergunto se qualquer traço caucasiano não pode simplesmente ter sido classificado como negro. Fiquei imaginando Christmans com aqueles zigomas faciais salientes. Pra mim, a dúvida persistiu até o fim do livro e achei bastante interessante.

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  2. A questão racial _especificamente a discriminação contra os negros_ é um dos temas que podem ser apontados na obra de Faulkner, embora não da mesma forma determinante que em autores como Toni Morrison e Ralph Ellison. Faulkner o usa como representação da condição humana, dispensando qualquer tom folhetinesco ou engajado, por isso a impossibiliadade de classificar Joe racialmente (usando-se "raça" como referência truncada).

    Embora seus amigos _ de Faulkner_ fossem quase todos negros e gente do povo, o painel a que propunha fazer em seus livros era universal. Daí um conto revelador que escreveu, intitulado "Folhas Vermelhas", em que confronta duas "raças" discriminadas nos EUA, a dos índios e a dos negros. Nesse conto _ magistral, com um dos finas mais belos_ os índios oprimem os negros, e o enredo se ampara na fuga de um desses negros escravos, perseguido por caçadores indígenas.

    Gostei das implicações psicológicas de seu post, o repúdio de Joe às mulheres, sua "castração". E sua menção à bíblia e os rituais cristãos usados como espiação da negritude pelos que adotaram Joe. Interessante que tocastes num ponto fundamental: a Bíblia como grande influência _ declarada_ do autor, tanto no tom apoteótico do estilo, quanto nos símbolos de danação. O nome do condado mítico de Faulkner, Yoknapatawpha, tem um significado condizente: Terra Dividida.

    Belo texto. Aguardando a próxima parte.

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  3. CAMINHANTE E CHARLLES
    Em tempo, retirei a quebra de página e exibi o texto inteiro, porque tinha ficado confuso.
    Muitíssimo obrigado pelos comentários. É muito bom ter podido participar um pouco da conversa tão inspiradora que estavam tendo nos seus blogs.

    CAMINHANTE: eu concordo com você. Não ficou definido se Christmas tem mesmo sangue negro. Mas aquela sociedade (ele incluído) decide acreditar nisso. E age em relação a ele tendo por base esse parâmetro. É nesse sentido que o livro me despertou a possibilidade de utilizá-lo para refletir sobre a imagem do híbrido e do fato dela ser abominável naquela cultura.

    CHARLLES: É muito bom ler tudo o que escreves sobre Faulkner, ainda que seja em um comentário de um post.
    Claro que Luz em Agosto é muito maior do que isso, mas, entre outras coisas, não te parece que a forma como a questão racial é tratada naquele universo está inevitavelmente imbricada com a influência religiosa naquela visão de mundo?
    A mim parece que é isso, sobretudo no que diz respeito à questão da IMPUREZA. Entre outros aspectos, o livro me sugeriu essa chave de leitura.

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  4. A questão racial está totalmente envolvida com a questão religiosa. Nota: Faulkner era grande admirador da Bíblia enquanto OBRA LITERÁRIA, que, realmente, é um grande livro. Mas a opressão religiosa está presente em vários livros dele, mas creio que nenhum na forma tão intensa como a que sofre Joe em Luz em Agosto.

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