sábado, 5 de fevereiro de 2011

Luz em Agosto, de W. Faulkner - Parte 1

Cheguei a Luz em Agosto, de Faulkner, através dos posts e debates entre Charlles Campos e a Caminhante. Enquanto os lia, minha vontade de, finalmente, tirar o atraso na leitura de Faulkner se tornava irresistível. Coloquei o Miguel no carro e fui até o campus da UFSM, onde retirei o livro na biblioteca. O post ficou tão grande que o dividi em dois. O primeiro é uma pequena apresentação e publico hoje. O outro, que vou publicar amanhã ou depois, eu não recomendo para quem ainda não leu o livro, porque "entrega" partes importantes. Tudo pensado bem rápido e no calor do momento. Calor, aqui, não é apenas figura de linguagem, pois o livro foi lido nas tardes abrasadoras de janeiro.


Luz em Agosto, de William Faulkner. Editora Nova Fronteira, 2a. ed., 1983. Trad. Berenice Xavier. (Edição original é de 1932)



Uma mulher se desloca por uma poeirenta estrada do norte do Mississipi. Avança com uma determinação tranquila, ora conseguindo carona nas carroças dos camponeses, ora mesmo a pé. Está grávida. A todos que lhe ajudam, ela conta sua história, ainda que não tenham pedido. Vem andando desde o Alabama, estado vizinho, à procura do marido que partiu atrás de trabalho e que prometeu mandar buscá-la quando se estabelecesse. Seu destino, agora, é a cidadezinha de Jefferson, onde soube que ele talvez estivesse trabalhando em uma serraria.

Nesse estabelecimento, está empregado Byron Bunch, que trabalha mesmo aos sábados à tarde, quando todos os seus companheiros deixaram o local ao meio-dia. Bunch segue sua rotina naquelas tardes solitárias, respeitando todos os horários como se estivesse em um turno de trabalho regular. Assim, pensa fugir do mal. Em uma dessas tardes de sábado, ele vê surgir uma coluna de fumaça no horizonte. Acaba sabendo que se trata de um incêndio na propriedade de Miss Burden. Nesse local, em uma antiga cabana de negros, vivem dois ex-trabalhadores da serraria. Bunch recorda deles. Joe Brown era extrovertido, eloquente, de boa aparência e claramente um patife. Já Joe Christmas era um tipo estranho, trabalhando nos primeiros dias com camisa e gravata. Enquanto medita sobre a possibilidade dos dois estarem envolvidos no incêndio, Bunch recebe a visita, na serraria, da mulher que vem em busca do marido ausente. Esse encontro põe os personagens em contato no tempo presente e, a partir daí, o autor começa a tecer uma rede bem urdida que dá corpo ao romance.



A técnica narrativa empregada por Faulkner faz a ação no presente andar lentamente. E aposta em enveredar-se pelo passado de cada um dos personagens, conduzindo o leitor em um mergulho ora melancólico, ora vertiginoso sobre suas histórias. Quando retornamos ao presente ficcional, voltamos cheios de novas informações, mas, sobretudo, de sensações e de conhecimento sobre a personagem. A cena do presente à qual retornamos está no mesmo instante em que a havíamos deixado, mas nossa percepção sobre ela será outra e nosso conhecimento, maior. Os personagens, que antes haviam apenas passado pela cena como um desenho de fundo, ganham outras dimensões. Ganham carne, sangue, cheiro, dor e memória. Não é que suas histórias pregressas nos expliquem mecanicamente suas ações no presente. Faulkner, autor maior, não cai nessa armadilha. O que ocorre é que, ao voltarmos, encontramo-nos capazes de empatia para com o personagem. É isso o que redimensiona totalmente a posição do leitor em relação às ações passadas no presente e o faz dar novos sentidos à trama que se desenrola à sua frente. A dura compaixão sem concessões com que Faulkner aborda cada história pessoal faz uma estranha, mas interessante, composição com a escolha de uma narrativa onde não falta o uso descarado do suspense, da arte de enganar o leitor. Ali, o contador de histórias se casa muito bem com o crítico social e com o poeta da condição humana.

Luz em Agosto é um romance onde é explorado, até o fundo, o drama de seres que lutam não apenas com seus afetos, mas com um poderoso universo cultural, assentado em uma rigorosa ética religiosa que lhes amarra os movimentos, atormenta as consciências e quer limitar a realização de seus desejos. O sul dos Estados Unidos, racista por princípio e inescapavelmente religioso, vai aparecendo como uma imagem maior de um quebra-cabeças, da qual os personagens e suas vidas aventurosas ou patéticas são as peças. É uma imagem que se concretiza muito para além dos estereótipos. Os dramas giram em torno do modo como cada um vive com e contra essa cultura; seja reagindo contra ela, como Joe Christmas e Lena Grove; seja negociando e submetendo-se, como o ex-ministro protestante Hightower; seja radicalizando-a e fazendo de sua vida um teatro que mostra a todos as formas mais potentes dessa ética religiosa, como Mr. McEachern. Assim, entre outros sentidos possíveis, o romance todo é uma aula ensinando que é pela ação das pessoas em construir suas trajetórias, em lidar com seus fantasmas e com os outros, que o Sul se constrói e que o racismo e o puritanismo religioso ganham forma concreta.

7 comentários:

  1. Fico envaidecido por ter feito duas pessoas como vc e a Caminhante terem se aproximado de Faulkner. É difícil escrever uma resenha sobre ele _ deve ter percebido_ por sua leitura oferecer múltiplas interpretações. Quando li Luz em Agosto, pela primeira vez, só me contagiou o estranhismo da obra, a sua inclassificação, não se parecia com absolutamente nada que havia lido antes. Faulkner é mais sobrenatural que Kafka. O tcheco nos engana que está falando de um outro mundo, mas suas fábulas são diagnósticos visíveis das realidades humanas desse mundo; já Faulkner usa esse mundo como repertório, mas a impressão é de que tudo em suas páginas é alienígena.

    Reparou como ele vai construindo a obra de forma a não nos esclarecer nada, opressivamente, e a encerra sem acrescentar muita coisa além disso _ mas, quando fechamos a última página, com os minutos nos vem várias informações retardatárias, e passamos a COMPREENDER?

    Estou sem tempo agora, e gostaria de comentar mais. Adorei seu texto. Você pega pelo lado que falta às minhas análises literárias: uma organização meticulosa, um olhar mais acadêmico e pontual.

    Vale o que a Caminhante disse: como Joe é solitário, calejado, sofrido, excluído, maltratado.

    Abraço.

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  2. Valeu pelo comenário, Charlles. Eu esperava por ele, já que você é diretamente responsável por eu, finalmente, ter me animado a ir até Faulkner.

    O próximo post é justamente sobre o Joe.

    Sobre a coisa acadêmica. A gente tenta se livrar (juro que tentei), mas é difícil deixar de lado esse cacoete.
    Grande abraço.

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  3. Não há nada de errado com a "coisa acadêmica", conta até a favor, em alguns casos (o seu incluso).

    Se resolveres explorar outros livros do Faulkner, vai achar a gênese de Cem Anos de Solidão e outras narrativas do nosso GGM.

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  4. Também gostei muito da tua análise. A achei mais organizada e mais clara do que a minha e a do Charlles. Uma leitura que avisa ao leitor o que será pedido dele ao ler o livro. Estou curiosa para saber o que nos aguarda na segunda parte.

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  5. CAMINHANTE: como eu disse, você e o Charlles, com aqueles seus post e debates foi que me deram ânimo para me aventurar em Jefferson (e Mênfis, e outros lugarejos do Sul) nas tardes escaldantes das minhas férias. Muito, muito grato. Vocês e o Milton Ribeiro me trouxeram uma lista de livros "a ler" que já me manterá ocupado por mais de cem anos.

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  6. CHARLLES
    Pois é, o Gabo sempre insistiu com o fato de que Faulkner era uma grande influência. E Hemingway também. E Kafka. E o avô dele.

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  7. Adorei a resenha! Eu tive que ler duas vezes o Luz em Agosto para entender. Li porque um amigo me perguntou se Bergman, com o filme Luz de Inverno, tinha sido influenciado pelo livro. Aí eu li o livro, li de novo e vi o filme, que já tinha visto tempos antes. Aí acabei fazendo um texto muito pessoal comparando o livro e o filme, além de colocar muito da filosofia de Sartre no meio. Queria mandar pro meu amigo, quem sabe para responder sua pergunta... Mas estou meio insegura sobre se as interpretações que fiz estão certas ou não... Entretanto, achei legal dar a dica pra quem gostou de Luz em Agosto, assistir o Luz de Inverno do Bergman, e os dois outros filmes da trilogia do silêncio! ^^

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