Este post do Milton Ribeiro, bem como os comentários ali realizados, me fizeram voltar a Calvino e Borges.
Amo “As cidades invisíveis”, de Calvino. É uma das minhas 10 obras preferidas (que, na realidade, devem somar mais de 50, entre elas Ficções, do Borges). Parte do texto abaixo, é transcrição do meu comentário lá no post.
Uma das coisas que mais gosto no livro de Calvino é o fato de que Kublai Kahn conquistou/herdou o maior de todos os impérios, mas está condenado a jamais conhecer muitos de seus territórios. Ele é um imperador incompleto. Quem olhar para ele, poderá ver vazios pungentes aqui e ali em seu corpo imperial. O Império é grande demais para os limites dos deslocamentos a cavalo, em camelo, nos barcos a vela e remo. O Império é grande demais para uma única vida. Assim, para conhecer o seu próprio Império e, de alguma forma, conhecer a si mesmo, o Imperador precisa dos outros, das narrativas que lhes fazem.
Então, ele faz uso de emissários, encarregados de viajar pelos confins e dar-lhes a conhecer através de seus relatos. Dentre eles, Marco Pólo é o mais amado, não porque viaje mais rápido ou percorra maiores distâncias, mas por sua arte de narrar. É através da palavra de Pólo que se presentificam as cidades para Kublai Kahn. Através, portanto, de um jogo inter-subjetivo que articula três pontas: o próprio Imperador, o narrador-viajante e as cidades, que nunca se saberá se existem mesmo ou se têm aquela forma. Mas não importa, porque a narrativa é o modo delas existirem para a experiência do grande Kahn. Pólo é o mago que restitui a inteireza ao imperador despedaçado.
Mas ninguém se engane com essa minha conversa sobre limites e inteireza. Outra característica do império do Kahn, e também das narrativas de Pólo, é que não se pode demarcar com certeza as suas fronteiras. Nas suas fronteiras não há muralhas. Há sim imensos espaços vazios, outros que são estradas, rios, oásis onde se misturam povos vizinhos e os habitantes do Império. Por ali vão e vêm o vento, os mercadores, os fugitivos, os viajantes.
O fato de ser impossível conhecê-lo de todo facilita-lhe a qualidade de infinito, de algo que pode ser continuamente reconstruído.
(ao que parece, a imagem que usei é o Mapa Mundi, de Fra Mauro, do século XV, talvez inspirado nas narrativas de Pólo. Busquei neste site aqui)
Meu problema de pesquisa veio de uma passagem desse livro. Sempre coloco nos textos maiores. Reproduzo:
ResponderExcluirKublai não parecia disposto a ceder à fadiga.
— Fale-me de outra cidade — insistia.
—... O viajante põe-se a caminho e cavalga por três jornadas entre o vento nordeste e o noroeste... — prosseguia Marco, e relatava nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. Podia-se dizer que o seu repertório era inexaurível, mas desta vez foi ele quem se rendeu. Ao amanhecer, disse: — Sire, já falei de todas as cidades que conheço.
— Resta uma que você jamais menciona. — Marco Polo abaixou a cabeça.
— Veneza — disse o Khan.
Marco sorriu.
— E de que outra cidade imagina que eu estava falando? — O imperador não se afetou.
— No entanto, você nunca citou o seu nome. — E Polo:
— Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza.
— Quando pergunto das outras cidades, quero que você me fale a respeito delas. E de Veneza quando pergunto a respeito de Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita. No meu caso, trata-se de Veneza.
— Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela.
E é por isso que trabalho com literatura. :)
Bá Fernando, não sabia dessa influência específica.
ResponderExcluirGenial!
Sou suspeito pra falar sobre Calvino... mas esse filho da mãe ainda me mata de emoção.
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