Congressos acadêmicos são comuns na vida dos historiadores. Assim, não havia nenhum assombro em acordar bem cedo, juntar as coisas e entrar em um carro com mais três colegas, 300 quilômetros rumo ao sul, para um evento na Universidade Federal de Pelotas. Durante o dia, tudo dentro do previsto: comprei doces depois do almoço e a tarde transcorreu com uma mesa-redonda em que estive acompanhado por outros dois pesquisadores.
Porém, à noite, eu faria uma das conferências, cujo tema, muito acadêmico, eram as pesquisas de história social sobre o sul do Brasil no século XIX. Acontece que, na mesma seção, falaria sobre o Movimento da Legalidade não um pesquisador, mas Sereno Chaise, ex-governador do estado e que era deputado ao tempo do movimento. Não são poucos os textos que trazem reflexões sobre a diferença de posição dos protagonistas da história e dos estudiosos que não viveram aqueles tempos. Em ambos os casos, há vantagens e problemas na hora de analisar um processo histórico, mas não há dúvida que os discursos, as explicações e as narrativas produzidas serão feitas de matéria distinta. Para minha sorte, eu não iria falar sobre a Legalidade e sim sobre gente que já havia morrido há mais de 100 anos e que nem eu, nem meu companheiro de mesa, havíamos conhecido. Porém, para mim, a experiência era impar.
Se alguém ainda não sabe, o Movimento da Legalidade foi deflagrado em 1961, quando da renúncia do presidente Jânio Quadros. O vice-presidente, João Goulart (PTB), estava em missão na China. Os ministros militares comunicaram que ele não poderia assumir e que, se o tentasse, seria preso ao desembarcar em solo brasileiro. Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Goulart, organizou a resistência da Legalidade, requisitou a aparelhagem da rádio Guaíba e entrincheirou-se na sede do governo estadual, o palácio Piratini, em Porto Alegre, junto com correligionários e protegido pela Brigada Militar do RS. Na praça da matriz, em frente ao palácio, milhares de pessoas faziam vigília em apoio ao movimento. No lance mais espetacular, a base aérea de Canoas (RS) recebeu ordem para bombardear o palácio Piratini, dando início a uma guerra civil. Porém, os oficiais aviadores não conseguiram decolar porque os sub-oficiais e sargentos sabotaram os aviões e protagonizaram uma insurreição. O movimento ganhou força quando o comando do 3º. Exército, sediado no sul, aderiu a ele. Quando o presidente João Goulart chegou a Porto Alegre, anunciou sua decisão de aceitar uma solução conciliatória, um parlamentarismo que lhe retirava o poder efetivo. A multidão na praça frustrou-se e há quem diga que Brizola e Jango brigaram feio. De qualquer modo, foi um dos momentos marcantes da história da democracia brasileira.
Pois Sereno Chaise era deputado estadual e, possivelmente, o amigo mais próximo de Brizola, estando sempre ao lado dele naqueles tempos. Eu não tenho qualquer simpatia por políticos. Tendo sempre a desconfiar deles. E também não concordo com a antiga corrente historiográfica que via nos fatos e personagens políticos o único objeto de interesse da História. Porém, após quase duas horas ao lado de Sereno, ouvindo-o falar e responder perguntas, chegou a minha vez. Eu deveria expor minhas reflexões sobre o longínquo século XIX. Confesso que me senti como um menino que fora convidado a falar a todos sobre seus brinquedos. Até acho que não cometi nenhum disparate, porque o público ficou até o fim. A verdade é que gostei de ouvir aquele homem dizer, aos 83 anos de uma vida cheia, que tivera muitas dúvidas e que ainda as tinha. Ele dissera que não conseguia julgar as decisões tomadas por Brizola, por Jango. Quem sabe o que vem depois? Afinal, ninguém pode prever o futuro. Mas é preciso posicionar-se. Ali estava algo que ficou no fundo do meu pensamento mesmo depois da fala. Desejei muito que alguns historiadores, cientistas sociais e militantes políticos ouvissem aquilo. Desmontaria muito do mecanicismo e teleologia em algumas formas de ver a História. Eu quero distância de governantes e historiadores que não tenham dúvidas.
Do passado das decisões gloriosas (e frustradas), da experiência pessoal de um velho militante que assume a dúvida, ao prosaísmo das batatas fritas num boteco. Beleza de post. Vindo de você, ainda estou a procurar no eco sonoro que acompanha o término da leitura, o que tem de suspeito nele_ quais as correlações veladas.
ResponderExcluirSinceramente (sem babação de ovo): gostaria que tivesses escrito mais, com pormenores da palestra, as impressões suas da platéia, as suas sobre o velho político. È que, como sabes, também sou historiador (ainda que inoperante) e detalhes assim me interessam muito.
Mas gostei pra valer do texto.
Abraço.
(Brincadeira a palavra que o blogspot arranjou para mim digitar nesse comment: "cagore".
Valeu Charlles.
ResponderExcluirTambém sem babaçãode ovo, respeito muito a tua opinião. Pois eu tinha feito um post assim, mas cortei a metade do texto, porque achei que teria alguns problemas de estrutura e ritmo.
Acho que, neste texto, o escritor venceu o historiador, se é que dá para separar essas coisas.
Oi, adorei o relato do que podia ser mais um evento nos muitos que já foi e nos que ainda irá...Não foi mais um pela presença desse político e da despedida com chave de ouro.( A parte da la minuta)Interessante o fato de ter exposto tua ansiedade em falar ao lado do Sr. Sereno.(Para não falar político novamente). Realmente seria legal se falasse mais sobre a palestra mas, na minha opinião, foi na medida. No mais nada mais.
ResponderExcluirCoisa boa é viver com mais dúvidas do que certezas. E ainda assim se posicionar. O mais empolgante da vida é justamente esse salto no escuro constante. Ainda que seja um salto no escuro sobre um prato de batatas fritas.
ResponderExcluir