O Miguel acordou às oito, pedindo o mamá. Chovia estrondosamente. Foi demorado fazer sozinho todos os procedimentos de um despertar e preparar para viagem. Coisas que, normalmente, fazemos em dois, mas hoje a mãe dele está em São Paulo, lançando um livro em que é co-autora. Enrolei-me um tanto, ainda mais eu, que costumo ter dificuldade mesmo de arrumar somente a mim.
Miguel adora viajar. Foi cantando no carro, até adormecer. Fomos ver minha mãe e meus avós e visitar a memória do meu pai, na cidade que ele adorava e onde pediu para ser enterrado. Quando chegamos à ponte da entrada, vi que o rio estava caudaloso e barrento, como fica nos invernos de muita chuva. Diferente dos tempos secos de verão, quando ele é manso e limpo. Até hoje, lembro do cheiro do rio quando eu era guri. E do tato da água na pele. E lembro das margens onde corre uma estrada fechada por árvores. Nessa estrada, meu pai e eu caminhávamos nos domingos pela manhã, para ir pescar.
Meu pai era inteligente e irônico. Às vezes, era debochado mesmo. Certa ocasião, numa reunião de pais e mestres, na escola onde era professor, ouviu uma senhora doutrinar: “O problema dos jovens, em seus namoros, é que só querem saber da hora da cama! E a cama não é o mais importante em um relacionamento.” Ao que meu pai pediu a palavra e disse: “Apoiada! Concordo inteiramente!” Ela, cheia de autoridade: “Viram, o Luís Antônio também acha que o sexo não é o mais importante em um relacionamento!” e meu pai: “Espera, Fulana, tu disseste a cama. Daí eu concordo, a cama não é o mais importante!”
Conforme a doença avançou e foi lhe tirando os movimentos e, muito depois, a autonomia e a consciência íntegra, lembro dele ir misturando o humor com uma funda melancolia. E também foi desgostando do futebol. Ele que, na minha infância, vivia verdadeiramente os campeonatos. Lembro que, em 79, houve uma semifinal, Inter x Palmeiras. Lembro de um gol do Falcão, colocando o pé na sola do palmeirense Mococa. Lembro de meu pai me rodar no ar. Eu, com seis anos, achei que estava voando.
Hoje, quando a chuva deu uma trégua, aproveitando o pátio e a casa grande, o Miguel correu sem parar, gritando inteiro, feliz que só ele. Pisoteou o gramado, derrubou umas quantas flores e aterrorizou cães, gatos e galinhas. Encheu os olhos do meu avô quase centenário. Foi então que eu pensei no meu pai. E imaginei que, algum dia, eu devo ter corrido, daquele mesmo jeito, naquele mesmo quintal. E que, talvez, ele tenha me visto como hoje eu vi o Miguel. E que, provavelmente, sentiu o que eu senti. E a minha saudade ficou sem fim.
O mencionado gol do Falcão está entre 0:57 e 1:05 min do vídeo