quinta-feira, 28 de abril de 2011

Hopper e Degas

Eu sou assombrado pelo Hopper.


Aquelas solidões. Aqueles vazios. O indivíduo e todo o espaço. Para dentro e para fora dele mesmo.


Aqueles olhares que nunca se encontram. Todos estão sós, juntos. 



Acontece que um dia eu descobri, em uma parede, um quadro do Degas que tinha o Hopper todo nele. Foi daquela matéria que o Hopper puxou, puxou, esticou, arrumou, botou uns silêncios e criou sua própria obra.  Como diria o Manoel de Barros, o Hopper tem que dar federação ao Degas. Nessas solidões, o Degas exerce PRIMAZIA.
Além de tudo, a Bebedora de Absinto tem umas cores, e uns tons, que são os que vejo pela minha janela, neste fim de tarde de outono. Eu estou com ela.






sábado, 16 de abril de 2011

A música preferida do Miguel

Não tem erro, desde que um amigo me presenteou com o "Brave New World", cada vez que entramos no carro o Miguel já pede "a música, a música". Tem que ser esse álbum. Quando começa a tocar "The Wicker Man" ele aperta os olhos e sacode a cabeça, demonstrando que gosta de um som mais pegado. Porém, é quando vem "Ghost of the Navigator", linkada abaixo, que ele fica feliz mesmo. Acompanha o tempo inteiro cantanto la-la-la. Quando termina, faz uma cara de dar dó e diz "cabô música...".
Assistindo o vídeo abaixo, do show do Iron no Rock in Rio III (2001), fiquei verdadeiramente comovido em ver aqueles senhores de meia idade detonando no vocal, nas guitarras, no baixo e na bateria. É uma prova de que pode haver envelhecimento com dignidade. É um sopro de esperança. 
Se vocês se dignarem a buscar vídeos da década de 1980, verão que eles abandonaram as calças colantes de lycra (graças aos céus!), mas não perderam nada da capacidade de nos fazer navegar em mar aberto.
Lembrando que Bruce Dickinson é formado em História, e vendo sua energia na condução do vocal e nas acrobacias físicas, posso colocá-lo entre os historiadores que não perdem nada com a idade, como Eric Hobsbawm. Vida longa para eles!
Agora, levantem ao máximo o volume e vejam como o Miguel sabe mesmo das coisas:



sexta-feira, 8 de abril de 2011

Sobre brasões e "descendências"

Uma coisa que me tira do sério é gente enchendo a boca para dizer que é europeu, só porque um bisavô seu nasceu na Alemanha ou na Itália que, aliás, nem tinham esses nomes quando o ancestral veio ao mundo. 
Que se entenda bem, não tenho nada contra quem faz cidadania italiana, portuguesa, alemã. Acho até legal. É possível que ainda faça a minha. Não vejo mal nenhum em se pertencer a mais de uma nacionalidade. A questão é como se trata o fato de ter essa origem.
O problema aparece quando os descendentes de europeus utilizam um discurso onde fica claro ou subentendido que isso agrega a eles uma qualidade superior. O mecanismo que gera essas visões tem várias engrenagens. Em primeiro lugar, está um desprezo pelo Brasil, ao qual, por vezes, se agrega os adjetivos "pobre", "atrasado", "mestiço". Junto a isso, vem um enaltecimento da Europa como lugar "rico", "civilizado", "moderno", "branco". A  origem europeia é vista como capaz de transmitir aos seus "afortunados" portadores qualidades como o amor ao trabalho, a ordem e a alta cultura. Essa transmissão se daria, ou por tradição cultural, ou, nos casos menos defensáveis, é vista como sendo dada pela própria biologia, em uma sobrevivência de explicações raciológicas.
Acontece que a Europa de onde saíram milhões de emigrantes para diversas partes da América, no século XIX e início do XX, era um lugar de industrialização, mas também de grande geração de miséria. A lenta dissolução dos direitos consuetudinários ao uso da terra proletarizou inúmeras famílias camponesas. A expansão da indústria arruinou o artesanato tradicional. Foram esses deserdados famélicos que vieram buscar melhor sorte nas novas terras. Ou alguém pensa que foram muitas as pessoas de boa condição social a aceitar a aventura de atravessar o oceano e começar de novo em outro mundo?
Adoro ser historiador, mas esta profissão tem algumas maldições. Uma delas é o parente de um amigo que fez a genealogia da família e nos garante que descende de Carlos Magno pela linha materna e de Adão pela paterna. Aí diz que "tem descendência" alemã ou italiana e que seus ancestrais europeus, que migraram para o Brasil, eram nobres. Daí te mostra o brasão da família, em cima da churrasqueira. 
Dá vontade era dizer que: 1- Não é "tenho descendência" e sim "tenho ascendência" ou "sou descendente", pois "ter descendência" alemã significa que você tem filhos ou netos alemães. 2- Salvo raríssimas exceções, as pessoas que vieram para o Brasil eram miseráveis que buscavam um futuro onde pudessem fazer três refeições por dia. Os antigos servos tomavam o nome de seus senhores ou da região em que viviam (o que dá no mesmo, pois os nobres muitas vezes tinham títulos que incorporavam o nome de seu senhorio). Assim, aquele brasão não é da sua família, companheiro, mas dos nobres que a exploravam.
Mas, na maioria das vezes, não digo nada. Dou um sorriso amarelo e sigo adiante.
Não sou um nacionalista inveterado mas aprecio a adorável mistura que formamos. Além disso, assim como ocorre com a Caminhante, também a mim enerva essa mania de glorificar tudo que é estrangeiro só porque não é do Brasil. Quando morei no Rio de Janeiro que, desde a Era Vargas, dita o modelo do que é ser um natural deste país, percebi que eu não era brasileiro. Depois, morei na França e percebi que era. Ou seja, por mais diferente que eu fosse de um carioca, era muito mais parecido com ele do que com um francês. Ao mesmo tempo, quando vejo os filmes do Fellini ou do Moniccelli sobre as cidadezinhas da Itália, fico impressionado como aquilo tem a ver com a cidade onde nasci e com a minha família. Reconheço em mim muito dos traços daquela cultura e também da alemã, que vem por intermédio de meu avô materno. Não me orgulho desses traços mais do que me orgulho de minha origem indígena ou negra. Mas os reconheço, às vezes com raiva, às vezes com terno e verdadeiro afeto, mas não porque sejam brasileiros, ou italianos ou alemães, e sim porque me remetem à infância, aos meus avós, pais, tios.
As origens culturais estão e mim e me constituem. Não há como fugir e até gosto disso. O nacionalismo radical não. Essa escolha, sim, eu posso fazer.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Sobre o Beira-Rio e Porto Alegre

Meus amigos já não aguentam ouvir essa história. Mas um dos meus defeitos é repetir tudo o que eu gosto de novo e de novo e de novo, sem nunca me saturar. A verdade é que construímos nossas próprias cartografias afetivas das cidades em que habitamos. Em Porto Alegre, onde morei por dois anos, e depois de novo por três anos, o Estádio Beira-Rio ocupa um lugar maravilhoso. O termo é esse mesmo, porque remete não apenas a uma sensação de alegria e prazer, mas também de sonho, de memória e de imaginação.
Eu fui um garoto do interior. Morando no Rio Grande do Sul profundo, eu era apaixonado por futebol. Jogava bola o tempo inteiro. Quando não estava fazendo isso, estava jogando futebol de botão, sozinho, narrando o jogo. Ou então, repartia essa brincadeira com meu amigo Rossano. Mas não pensem que jogávamos um contra o outro. Pelo contrário, nos instalávamos um em cada cômodo da casa e jogávamos sozinhos. Quando havia perigo de gol, narrávamos mais alto, para que o outro viesse assistir, simulando um duplex de rádio. Havia protestos de meu pai, mas a gritaria continuava. Meu sonho era ser narrador de futebol no rádio. Mas não tinha voz. 
Naquele tempo, eu ouvia as jornadas esportivas no rádio, desde a abertura, duas horas antes do jogo, até o pós-jogo. Eu ficava imaginando como seriam os grandes estádios, com placar eletrônico, refletores e cabines de rádio. Na minha cidade, havia apenas o estádio onde o clube local disputava o campeonato amador da região, com arquibancadas de madeira. O time jogava de camisas azuis e calção variando um pouco. Nos jogos oficiais, tinha até redes na goleiras. Mas não era a mesma coisa.
O mais perto que chegava do mundo do futebol real, da forma como era por mim imaginado, era quando, uma vez por ano, o pai do Rossano lotava a belina e íamos a Santa Maria ver o Inter de Porto Alegre jogar contra o Inter local. Na saída do jogo, comíamos "xis-burguer", motivo de orgulho e de contar para toda a gurizada quando retornava à minha cidade.
Pois quando morei em Porto Alegre, os quase vinte anos que me separavam daquele menino desapareciam nos domingos de sol. Era o menino mesmo que se preparava para ir aos jogos. Nesses dias, acordava tarde no meu apartamento no Menino Deus, caminhava com a Nika até uma churrascaria vizinha, bem barata e honesta. Depois voltávamos conversando, namorando. Lá pelas três da tarde, percebia o movimento da rua crescendo, as pessoas de vermelho, camisas, bandeiras, alegria, indo para o Beira-Rio. Era simplesmente mágico pensar: "O que vou fazer hoje?" "Ah... sim, vou ver Inter x São Paulo". Por vezes, ia com bons amigos. Mas gostava mesmo era de ir sozinho. Quer dizer, sozinho nada, eu ia é com o menino. Colocava os fones para ir ouvindo o Pré-Jornada enquanto me misturava aos que caminhavam para o Estádio. Gostava de tudo, nem me importava com os vendedores tentando me empurrar radinhos por 10 reais ou com a fumaça dos churrasquinhos de gato. Fui a dezenas de jogos. Não houve uma única vez em que meu coração não tenha se sobressaltado quando passava do corredor para as arquibancadas e tinha a primeira visão do gramado.
Lembro de vibrar, torcer, xingar, berrar. Lembro de inumeráveis momentos de tensão. Uma vez, em um jogo que não terminava nunca e que nós ganhávamos, comentei com um amigo: "minha mulher não pode saber o que acontece aqui" "ué, por que?" "Por que ela acha que eu venho aqui para relaxar..."
Lá, vi o Inter levantar duas taças da Libertadores da América. Privilégio para poucos.
Ainda vou ao Beira-Rio em jogos decisivos. Mas preciso viajar quatro horas. Descobri que não gostava tanto dos jogos e do estádio, mas o que o menino gostava mesmo era de tê-los ali, domingo e quarta-feira, à disposição, ao alcance de uma caminhada. É das coisas que mais sinto saudades quando penso nas 5 cidades em que morei. Quem sabe um dia.
Parabéns Beira-Rio. E obrigado.

Beira-Rio 2010, Inter Bi-Campeão da América. Foto do meu celular.